Versí­culos e violência


Salem Nasser

01/02/2016



Ouço ao meu lado alguém que diz, a um outro alguém: “você sabe, eu fui pegar o Alcorão… queria conferir, sabe, esse negócio que o pessoal diz… e eu vi lá, o versículo 191 manda mesmo matar, diz que matar é melhor do que subjugar…”

Coincidência ou não, o versículo 191 da Sura da Vaca é um dos preferidos daqueles que nos tentam convencer de que a violência está inscrita no DNA do Islã e é um comando expresso de seu livro sagrado.

Ninguém se preocupou em alertar esse falante cuja conversa me chegou ao ouvido, ou ele não se preocupou em descobrir, sobre o que diz o versículo 190 ou o 192 da mesma Sura, ou sobre os problemas de tradução, ou sobre a enorme complexidade do exercício de exegese do Alcorão.

Para além disso, no entanto, o seu problema fundamental foi confiar que encontraria o sentido do texto na sua literalidade.

Quando jovem, eu fazia isso e, em contato com as escrituras dos três monoteísmos, surpreendia-me que as pessoas não destroçassem aqueles livros tão logo os tivessem lido, as mulheres antes de todos os demais.

Alguém poderia imaginar que quem só vê a violência no Alcorão não deve ter tido qualquer contato com o Velho Testamento, mas não é necessariamente assim.

A literalidade e a interpretação rasa é reservada para o Alcorão, o outro, um total desconhecido. O que é nosso é mais profundo! O outro é texto, invenção, o nosso é sentido, verdade revelada! O mito do outro é fantasia ridícula, o nosso mito é milagre!

“Na época, ele (Muhamad) disse que era profeta e o pessoal por lá acreditou, se fosse hoje a gente internava, mandava para uma clínica…” seguiu aquele que discursava.

É interessante que não se tenha perguntado no mesmo fôlego o que seria de Jesus ou de Moisés se por aqui ousassem aparecer.

Dostoievski (pra não dizer que não falei dele) concebeu na Parábola do Grande Inquisidor a volta do Cristo à Sevilha da Inquisição onde seria posto sob ferros para que não tentasse novamente impor aos homens o fardo insuportável da liberdade.

Já não vivemos em tempos de Inquisição, mas não sei o que é possível dizer sobre a servidão… talvez reservássemos ainda hoje ao Cristo as correntes.

De todo modo, o imaginário de alguns reserva o manicômio apenas para os eventuais e extemporâneos falsos profetas. Não para os seus.

Os literalistas e os exegetas da violência no mundo muçulmano fazem certamente mais mal ao Islã e ao mundo do que o literalista e exegeta da pequena superfície que me coube ouvir por acidente.

Resta o fato de que entre nós o Islã é um grande desconhecido; e alguns versículos baixados da internet não são o que  basta para mudar isso.  

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