Dostoiévski no Iêmen


Salem Nasser

22/05/2015



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As guerras, como o sofrimento, são também inevitáveis

22/05/2015 12:58, atualizada às 27/05/2015 18:19

Salem Nasser,  professor de Direito Internacional na FVG e presidente do Instituto da Cultura Árabe, estreia nesta sexta-feira sua coluna quinzenal. Ensaia aqui um certo olhar, diferente, sobre Oriente Médio, Islã, Mundo Árabe e mais algumas coisas.

Naquele trecho de “Irmãos Karamázov” que Dostoiévski chama de “A revolta”, um Ivan Karmázov atormentado pergunta ao seu irmão Aliocha se, encarregado de erigir o edifício do destino humano, fazer as pessoas felizes e instituir a paz, este aceitaria fundar a sua obra sobre as lágrimas não vingadas de uma única criança supliciada para esse fim. Aliocha só pôde responder que não.

Essa cena da revolta visitou-me novamente há alguns dias, quando, pela tela da tevê, me apareceu uma criança, com não mais do que alguns meses, morta; a cabeça, os braços e as pernas balançavam como faria um boneco de pano enquanto ainda não se instalava neles o rigor da morte. Era o menor membro de uma família iemenita que acabara de ser extinta por bombardeio saudita.

Ocorreu-me que dificilmente se poderia atribuir à Arábia Saudita a intenção, por meio de sua guerra contra o Iêmen, outrora conhecido como Arábia Feliz, de erigir a felicidade humana, ainda que sobre os cadáveres de crianças.

É verdade que crianças inocentes sempre sofrerão e perecerão e é verdade que conheceremos sempre a crueldade atroz dos homens. É contra essa inevitabilidade do sofrimento que se revolta Ivan.

As guerras, como o sofrimento, são também inevitáveis. Mas para as guerras nós concebemos amarras, leis, que tentam diluir o absurdo que levam em si. As razões que autorizam o recurso legítimo à força são muito poucas e quem recorre à força está obrigado a proteger os inocentes. Essas amarras estão sendo ignoradas pela Arábia Saudita e seus aliados.

O artificialismo das justificativas que nos são apresentadas para legitimar uma guerra ilegal e a crueldade da punição a que se submete a população civil nos remetem às campanhas militares israelenses contra os palestinos. A semelhança explica em parte o silêncio observador, e secretamente aprovador, da Arábia Saudita quando dos últimos castigos a Gaza.

Apenas em parte, porque de resto aquela potência ocupante que preside sobre a tragédia do povo palestino vai aos poucos se revelando a amante secreta com que alguns regimes árabes já não se envergonham de serem vistos em público.

Pedem-nos que esqueçamos a ocupação e toda a questão palestina. O verdadeiro fantasma, nos é dito, é o perigo iraniano. É contra esse perigo que se mobilizam as armadas no Iêmen. É contra ele que se luta na Síria, no Líbano, no Iraque, e é para enfrentá-lo que acorrem os combatentes do mundo inteiro.

No Iêmen, todo um longo e complexo histórico de conflitos internos nos é representado apenas como uma tentativa iraniana de, por meio dos seus supostos agentes, os Houtis, submeter o país ao seu jugo, enquanto amplia sua área de influência em toda a região do Oriente Médio.

O expansionismo iraniano teria ainda outros cúmplices ou instrumentos: o Hezbollah libanês, o regime sírio, o governo iraquiano e alguns outros.

Para enfrentar esse perigo, um arco de aliados que vai dos Estados Unidos à Arábia Saudita, passando por Israel, Turquia, Jordânia e tantos outros, se permite até mesmo alimentar, sem confessá-lo, a fera que os virá a devorar.

É verdade que a fera, a Al Qaeda, o Estado Islâmico e seus congêneres é denunciada aqui e ali por sua violência indizível, e é verdade que sofre aqui e ali o impacto das bombas norte-americanas. Mas falta convicção a tudo isso. O chamado campo da moderação continua a apostar, secretamente mas nem tanto, nesse que imagina poder ser seu instrumento na luta contra o que é representado como uma espécie de imperialismo iraniano.

Não escapará à nossa atenção a facilidade com que se poderá interpretar essa oposição como sendo um conflito sectário ou identitário em que, de um lado, estão os persas e, de outro, os árabes, de um lado, os xiitas e, de outro, os sunitas.

A tese de que os vários grupos religiosos ou étnicos do Oriente Médio estão envoltos em conflitos sectários irresolúveis que deitam suas raízes no início dos tempos é falsa na origem. É, no entanto, uma profecia que se vai realizando à medida em que seus germes tantas vezes espalhados vão encontrando um terreno cada vez mais fértil.

O sectarismo é tema que merece mais do que o que digo aqui. Por enquanto, fiquemos apenas com isto: enquanto se fomenta e cresce o antagonismo sectário, prosperam os nacionalismos que alguém chamaria românticos, exclusivistas, e prospera a ideia de uma nova fragmentação dos territórios para que cada nação outrora plural seja agora dividida em nações xiitas, sunitas, cristãs, curdas…

Se isso decorre de projeto ou de acaso, resta ver. As implicações para a região são, no entanto, muitas, e os riscos, terríveis.

O sofrimento seguirá inevitável.

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