Biden presidente dos Estados Unidos: a volta da hipocrisia, necessária


Salem Nasser

24/11/2020



Recentemente, me vi desejando o retorno da hipocrisia. Eu pensava no comportamento dos Estados Unidos, sob Trump, em relação ao resto do mundo e em relação ao direito internacional.

Eu dizia que nos últimos quatro anos os Estados Unidos e seu presidente haviam abandonado aquela persona de defensores do direito, das instituições das liberdades, da democracia e que haviam inclusive abandonado a estratégia de usar o direito como instrumento do seu próprio poder.

Em resumo, apontava para o fato de que vivíamos os perigosos tempos em que o vício considerava dispensável prestar homenagens à virtude. Tempos em que uma certa hipocrisia necessária se fazia ausente.

E de fato, Trump, talvez por uma forte inclinação pessoal, ao abandonar acordos internacionais, ao solapar organizações e instituições internacionais, ao chantagear abertamente países e pessoas, desnudava o bully que se escondia, em tempos normais, sob o manto da “maior democracia do mundo”.

Os riscos desse comportamento em que o vício se exibe sem se constranger têm a ver com a instabilidade e com as incertezas aportadas pelo poder que não teme agir arbitrariamente. E, para conter esses riscos, era preciso convidar, de volta à cena, aquela dose mínima de hipocrisia.

Por outro lado, no entanto, aquele desnudamento desavergonhado trazia em si um certo frescor, um certo brilho: não deixa de ser fascinante a sensação de contemplar a verdadeira face da besta! E mais, aqueles exercícios trumpianos de um poder sem luvas pareciam acelerar a decadência desse mesmo poder: a grande potência parecia encolher moralmente e ao mesmo tempo exibir as rachaduras em suas máquinas, militar, econômica, social, política.

Pois bem, com Biden eleito, aquela hipocrisia necessária anuncia sua volta aos palcos, e boa parte do mundo respira aliviada. Os Estados Unidos voltarão aos acordos internacionais, ou a alguns deles pelo menos – o do clima está anunciado, mas o nuclear, com o Irã, é uma incógnita; voltarão a contribuir para organizações internacionais que são partes essenciais da arquitetura da governança global; voltarão a fazer o discurso do direito e dos direitos. Mas, atenção, voltarão a fazer, ou tentar fazer, de todas essas coisas instrumentos a serviço de seu poder e de sua posição hegemônica em relação ao resto do mundo.

Assim, quem até ontem pedia o retorno de alguma medida mínima de hipocrisia deverá agora voltar ao exercício usual de rasgar as teias tecidas por essa mesma hipocrisia e tentar revelar o jogo do poder que sob elas se desenrola. Afinal, não é porque o vício volta a prestar homenagens à virtude que ele deixa de ser vício.

É por isso que, quem quiser respirar aliviado e comemorar a vitória de Biden, deve fazê-lo com moderação. Sobretudo nós os não americanos, ainda que, mundo afora, as eleições americanas tenham sido cobertas e comentadas como se fossemos todos nós cidadãos dos míticos “US of A!”

Se o fossemos, aliás, também faríamos bem de comemorar comedidamente; afinal de contas, se 74 milhões votaram contra Trump – e não necessariamente por endossarem Biden – ainda é verdade que 70 milhões votaram para que Trump seguisse à frente da Casa Branca!

Mas nós, todos os demais, devemos lembrar que não estamos incluídos nisso que se chama de democracia americana. É verdade que somos partes interessadas nas políticas americanas e afetadas por elas, mas isso é porque, ainda que seja uma democracia para seus cidadãos, em relação ao resto do mundo os Estados Unidos agem e pensam como Império e exercem o poder e a influência do Império.

Isso não é menos verdade sob administrações democratas.

Biden foi vice-presidente sob Obama, talvez o presidente americano que melhor tenha combinado estratégias de preservação do Império e de proteção de seus interesses, reconhecendo os limites cada vez mais marcados ao seu poder e usando com grande habilidade a hipocrisia, os belos discursos em torno de altos valores e, ao mesmo tempo, a política de derrubada de regimes, de assassinatos seletivos, de intervenções militares, de instrumentalização de instituições internacionais como o Conselho de Segurança e o Tribunal Penal Internacional.

Biden não tem o carisma de Obama, e talvez não tenha a sua inteligência, mas tentará um pouco mais do mesmo. Acontece, no entanto, que o mundo mudou muito em muito pouco tempo, e as fraturas do poder americano estão hoje mais expostas diante de adversários atentos e conhecedores do jogo. Biden tentará reduzir o ritmo de uma decadência anunciada e o fará inclusive voltando ao caminho da hipocrisia que permite a convivência nessa espécie de selva civilizada.

Aos demais, países e pessoas, nos cabe respirar fundo, e não apenas aliviados, e construirmos as estratégias que melhor protegem nossos interesses. Sem inocência indevida porque o bully pode trocar de roupa e maneiras, mas continua de olho ne nosso lanche.

*As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional da FGV.