"Aproximação de Bolsonaro com sauditas é parte do alinhamento com os EUA"


31/10/2019



Em uma viagem que acabou sendo ofuscada por controvérsias pessoais de Jair Bolsonaro no Brasil, a agenda do presidente no Oriente Médio teve como principal resolução o anúncio de um aporte de 10 bilhões de dólares pelo Fundo Soberano da Arábia Saudita em projetos de energia e infraestrutura. Entre outras parcerias comerciais com os sauditas, que interessavam ao agronegócio brasileiro, também foram viabilizados acordos aduaneiros com o Catar e os Emirados Árabes.

Apesar do viés comercial, o momento mais comentado da visita à região foi a declaração de Bolsonaro de que o líder da Arábia Saudita, Mohammad Bin Salman, é "um irmão". O príncipe herdeiro do trono saudita é acusado de ordenar o assassinatodo jornalista Jamal Khashoggi no consulado de seu país na Turquia, em outubro do ano passado e o governo saudita regularmente encarcera ativistas pelos direitos das mulheres.

Em entrevista à DW Brasil, o professor da Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Salem Nasser, doutor em Direito Internacional e especialista em assuntos do Oriente Médio, analisa os sentidos da visita de Bolsonaro à região. Para Nasser, a visita é mais uma prova do alinhamento incondicional da diplomacia brasileira a Washington.

"Não está claro, em absoluto, por que corresponde aos interesses políticos e econômicos brasileiros conversar com os sauditas e considerar o Irã um pária. O Irã é maior comprador nosso do que todos esses países árabes vistos singularmente. O superávit é muito maior", explica.

DW: O governo anunciou um investimento de 10 bilhões de dólares do fundo soberano saudita em projetos de petróleo e infraestrutura. Até que ponto o sucesso comercial anunciado após a visita pode se concretizar?

Salem Nasser: O anúncio é muito positivo. Há uma esperança antiga brasileira de sair da pauta exportadora e atrair algum volume relevante de investimentos na relação com os países do mundo árabe, especialmente os do Golfo Pérsico, que são riquíssimos e mantêm fundos soberanos vultosos. Esses países sempre tiveram uma razão de natureza pessoal ou geopolítica para investir sempre nos grandes centros ocidentais. Sobretudo os EUA, mas também Reino Unido, entre outros. Eles não viam razões para desviar algum volume de aportes para o Brasil. Ainda que tivéssemos investimentos interessantes, outros polos eram mais atrativos por razões que têm mais a ver com política do que economia.

No contexto atual, creio que o interesse saudita esteja muito ligado ao apoio de Bolsonaro. Quando o príncipe herdeiro saudita, Mohammad Bin Salman, estava sob uma pressão ainda maior do que hoje, fez um "tour" em alguns países árabes para tentar recuperar sua imagem. Em todos os lugares, incluindo Egito, Tunísia e Argélia, houve revolta popular nas ruas contra a presença dele. Os governos tiveram que explicar por que o receberam, ainda que só no aeroporto. Normalmente, tinha a ver com alguma ajuda financeira na casa dos bilhões.

A visita de Bolsonaro foi oportuna para as duas partes?

De um ponto de vista cru, Bolsonaro o visitou e deu a oportunidade de uma fotografia. Em resposta, ele anunciou o investimento de 10 bilhões. O príncipe está procurando alguém que aceite ser visitado por ele ou visitá-lo, já que virou um pária pelo assassinato do jornalista no consulado saudita em Istambul. Como o Bolsonaro se dispôs a tirar uma foto com ele e chamá-lo de irmão, a visita é um presente que ele considera muito bem-vindo. São dois párias ou quase párias que precisam de encontros internacionais.

Bolsonaro vai ter dificuldades cada vez maiores de se apresentar em fotos com líderes mundiais, assim como o príncipe, ainda que ele tenha mais dinheiro. A visita passa uma sensação de normalidade que interessa a ambos. Evidentemente, o aporte financeiro é ótimo para o Brasil, mas duas ressalvas devem ser feitas. É preciso ver o dinheiro chegar, pois a promessa é fácil. Os sauditas fazem muito isso, assim como vários outros países. As promessas de apoio a fundos solidários costumam levar anos para serem desembolsadas, por exemplo.

Embora denuncie constantemente o autoritarismo de países como Cuba e Venezuela, Bolsonaro chamou de ‘irmão' um líder acusado de assassinar um jornalista. Como deve ser lido o aprofundamento das relações entre o governo brasileiro com um regime totalitário?

Nas relações internacionais, se você for realmente fiel a uma postura de não dialogar com países violadores de direitos humanos ou pouco democráticos, restarão poucos interlocutores no mundo. É uma realidade. Quando Lula se aproximou do Irã, foi questionado sobre como se relacionaria com um regime fundamentalista e antidemocrático. A posição adotada foi de que haveria mais avanços nos direitos humanos mantendo diálogo e criando canais de comunicação e entrada no mundo com esses países, retirando-os da posição de pária. Em grande medida, é uma resposta honesta.

Infelizmente, não acho que seja o caso do Bolsonaro. Ele está adotando, acriticamente, o discurso dos EUA e Israel. Ou seja, quem está de acordo com nossas agendas e interesses é democrático, enquanto os adversários são ditaduras.

O problema é que os EUA podem se dar a esse luxo porque o que aparece no discurso mainstream americano tem uma força muito grande e acaba sendo naturalizado pelo resto do mundo. Eles são a grande potencia inclusive nessa questão simbólica, e mentem melhor do que nós. O Bolsonaro não tem essa sofisticação, e tampouco somos capazes de naturalizar isso, porque o absurdo é notado na hora.

Não está claro, em absoluto, por que corresponde aos interesses políticos e econômicos brasileiros conversar com os sauditas e considerar o Irã um pária. O Irã é maior comprador nosso do que todos esses países árabes vistos singularmente. O superávit é muito maior.

Por qual razão vamos considerar o líder saudita nosso irmão? Deveria haver um cuidado com o simbolismo, já que é alguém marcado no mundo inteiro por mandar esquartejar e sumir com o corpo de um jornalista. No plano simbólico, é muito forte.

O Trump pode fazer isso porque representa uma superpotência, mas como nós vamos ser levados a sério depois por mais de 200 países com quem precisamos conversar? O governo incorpora de forma muito acrítica esse alinhamento aos EUA, sem nem saber por que está fazendo isso. O presidente escolheu viajar para os lugares que são clientes dos EUA até a medula.

A política externa do governo Bolsonaro é mais influenciada pelos ditames de Washington do que pelos interesses nacionais?

Se analisarmos apenas o que dizem e como se comportam o presidente, Eduardo Bolsonaro, Ernesto Araújo (ministro das Relações Exteriores) e Filipe G. Martins (assessor de assuntos internacionais), a ideia que passam é de uma submissão total aos EUA.

Não se trata de uma relação especial, em que se fala de igual para igual. No plano do simbólico, batemos continência para eles. Não é preciso um exercício de imaginação para além do concreto, isso já está evidenciado no discurso. Ao se aproximar da Arábia Saudita, é evidente que o Bolsonaro responde a uma agenda interna importante do agronegócio e se legitima diante da opinião pública que vê a politica externa como um desastre.

Ele volta com anúncio de investimentos, além de ter conseguido organizar uma agenda internacional. Mas ele também corresponde perfeitamente às instruções que recebeu dos EUA. É assim em relação a Israel, Irã, Oriente Médio. Nesse sentido, é mais uma prova de alinhamento incondicional.

O problema é que essa relação pessoal com o Trump inexiste, seja com Jair ou Eduardo. Se eles acreditam nisso, é outra questão, mas não é o perfil do Trump ter esse tipo de relação. É um cara que não tem amigos ou fidelidades. Acreditar que o Trump vai desenvolver uma relação de natureza pessoal e dar atenção especial ao Brasil é de uma inocência fatal para nós.

A experiência dos próprios sauditas mostra os riscos de confiar em alguém como Donald Trump. Ele disse publicamente que o governo saudita não dura duas semanas sem o apoio dos EUA e, portanto, que Riad é obrigada a comprar o armamento americano. Por que ele daria um tratamento diferente ao Brasil, que não é um comprador tão forte? Por que irá respeitar o Bolsonaro de um jeito que não respeita o príncipe herdeiro? Não há qualquer razão para tal.