A Argentina e o direito internacional


Rabih Nasser, Salem Nasser e Nathalie Sato

25/07/2014 às 05h00



Em 2001 a Argentina declarou uma moratória no pagamento de sua dívida externa. A suspensão dos pagamentos se estendia a títulos emitidos nos Estados Unidos de 1994 a 2001. Como resultado de negociações com os portadores desses títulos, o país conseguiu substituir, em 2005 e em 2010, a quase totalidade dos papéis. O fato de que alguns poucos investidores, entre os quais aqueles que compraram tardiamente os títulos - bem depois da moratória -, tenham optado pela cobrança judicial perante os tribunais de Nova Iorque dá lugar hoje a um risco de crise e novo calote.

Os títulos originários continham uma disposição, conhecida por pari passu, que impõe ao país devedor a obrigação de não subordinar esses papéis ou lhes dar condições menos privilegiadas que outros de mesma natureza.

Quando a Argentina renegociou a dívida, deixou muito claro, passando inclusive legislação nesse sentido, que os detentores de títulos que não se incorporassem ao processo de substituição dos papéis enfrentavam o risco de não-pagamento. E desde então, de fato, o país tem cumprido fielmente o cronograma de pagamentos dos títulos substituídos e não tem pago os que restaram.

A situação atual suscita o debate sobre a conveniência de um acordo internacional para as renegociações de títulos de dívida soberana. Regras válidas internacionalmente poderia ajudar a lidar com as incertezas que afetam tanto Estados quanto investidores.

O que decidiram os tribunais de Nova York, e o que foi finalmente confirmado pela Suprema Corte Americana, é que a interpretação correta da cláusula pari passu impõe a conclusão de que as decisões e a legislação argentinas, bem como o pagamento apenas dos títulos decorrentes da renegociação, são violações da igualdade de tratamento devida originalmente.

Essa decisão está fundada na interpretação que fazem da lei de Nova York que, segundo os termos dos títulos emitidos, é a lei aplicável às controvérsias que viessem a surgir. E a decisão é tomada pelos tribunais do mesmo Estado americano porque também isto está previsto em cláusula de foro competente.

Normalmente, por conta do princípio da soberania dos Estados, um país não pode ser submetido à jurisdição dos tribunais de um outro, a não ser que o faça voluntariamente. Trata-se da imunidade de jurisdição à qual o Estado pode, portanto, renunciar. E esta renúncia houve, aos olhos dos tribunais, pela aceitação dos termos dos títulos.

Mas, para além da imunidade de jurisdição, há aquela imunidade dita de execução, ou seja, a impossibilidade de se executar as obrigações de um Estado diante da jurisdição de um outro, ainda que ele tenha renunciado à imunidade de jurisdição e tenha sido com base nessa renúncia condenado.

É esta limitação que dá um sentido especialmente problemático ao caso argentino.

Tanto a imunidade de jurisdição quando a de execução são regras do direito internacional público razoavelmente uniformes na sua compreensão. No entanto, cada Estado tem a sua própria formulação dessas normas. É por conta desse possível desencontro entre a interpretação dos tribunais nacionais e a formulação no direito internacional que surge a discussão sobre a possibilidade de a Argentina levar essa controvérsia à Corte Internacional de Justiça.

O Judiciário americano fundou sua decisão numa lei interna federal sobre a imunidade e interpretou seus termos como restrições a que as autoridades nacionais pudessem de algum modo penhorar ou apreender bens argentinos presentes no território americano.

Diante dessa restrição, decidiu o tribunal de Nova York, apoiado mais tarde pela Suprema Corte, que as medidas aptas, e permitidas, a dar força ao seu julgamento eram basicamente duas: por um lado, sem tomar posse dos recursos argentinos porventura existentes em bancos, impedir que a Argentina opere os pagamentos aos detentores dos títulos renegociados a não ser que o faça na mesma proporção em relação aos títulos dos que se recusaram a negociar; por outro lado, permitir que se demande de bancos e outros informações sobre bens argentinos existentes em qualquer lugar do mundo.

Há aqui evidentemente uma questão problemática que diz respeito à interpretação que fazem os tribunais americanos da imunidade de execução e seus limites. Combinado isso com o efeito extraterritorial, que esta decisão se permite explicitamente, e que decisões de tribunais americanos tendem a ter por força da centralidade desse país nas relações econômicas internacionais, situações críticas podem surgir e se multiplicar.

Por isso, a situação vivida pela Argentina suscita um debate sobre a conveniência de um acordo internacional para as renegociações de títulos de dívida soberana. A existência de regras válidas internacionalmente poderia ajudar a lidar com as incertezas que afetam tanto Estados quanto investidores nessas situações e que tendem a se agravar a partir da experiência argentina.

Rabih Nasser é professor da FGV Direito SP e sócio de Nasser Advogados
Salem Nasser é professor da FGV Direito SP e consultor de Nasser Advogados
Nathalie Sato é advogada de Nasser Advogados

http://www.valor.com.br/opiniao/3626040/argentina-e-o-direito-internacional