Recusas, nacionalismo e democracia


Salem Nasser

28/11/2016



É difícil explicar o que vem acontecendo no mundo. Bom, sejamos mais precisos: o mundo nunca é propriamente explicável e quem disser que o entende ou mente ou se ilude; o que hoje está especialmente difícil de processar é a série de eventos inesperados, por muitos pensados como improváveis senão impossíveis, que se concretizaram e jogaram tantos numa espécie de estupor.

Fiquemos apenas com alguns: a vitória de Trump, precedida pela recusa em referendo do acordo de paz colombiano, precedida pelo Brexit. Tão diferentes em sua substância, esses três fatos têm uma coisa em comum: as cabeças bem pensantes, a mídia, todos aqueles que, detentores do monopólio do bom senso, nos dizem o que pensar do mundo, foram pegos de surpresa por resultados que, talvez, de tanto torcerem, acreditaram realmente impossíveis.

Agora estão todos à caça de respostas. Entre outras coisas, porque novos fantasmas colocam já as cabeças para fora e já não parece prudente simplesmente sorrir, dar de ombros e acreditar que as sociedades e os eleitores não nos decepcionarão. De repente, a ameaça de que cada país europeu poderá vir a tomar o caminho errado na próxima encruzilhada e de que todo o projeto de uma Europa integrada se desfaça como um castelo de cartas que desaba ganha concretude. Um sinal do avanço das coisas, nas últimas eleições presidenciais francesas o susto vinha de uma possível passagem da Frente Nacional ao segundo turno e hoje, para as próximas eleições, todos se perguntam quem irá ao segundo turno com a Frente Nacional e quem poderá derrotar esse bicho papão de direita.

Em parte esses fenômenos podem ser explicados por uma vontade de recusa. Muito tem se falado de um retorno ao nacionalismo, ainda que este venha em cores e formas variadas e que muitas vezes não se saiba dizer com que tipo se está lidando. O Nacionalismo é uma espécie de recusa, talvez do internacionalismo, talvez da globalização.

A repulsa ao internacionalismo é um voltar-se contra as estruturas do direito internacional, os seus mecanismos de cooperação e de composição de interesses e, sobretudo, contra as construções supranacionais que tiram do Estado partes de suas competências e o submetem a interesses que são definidos fora dele.

Já a recusa da globalização tem por alvo o capital e seus donos, as empresas e as teias com que envolvem o mundo todo, o mercado financeiro e sua capacidade de perfurar e contornar as fronteiras, todos parecendo fazer do Estado um ente incapaz de submetê-los e talvez até mesmo um instrumento a seu serviço.

O nacionalismo aparece também como a recusa do outro, ou porque se volta contra o imigrante e o refugiado, liberando o sentimento xenófobo, ou porque imagina e pretende proteger uma identidade nacional homogênea, única, pura, exclusiva, em que o pluralismo não tem lugar.

Outro movimento de negação, de repulsa, que é possível discernir nessas escolhas recentes talvez se pudesse chamar de antielitismo. Apenas em alguma medida ele pode ser associado ao nacionalismo, e isto porque a elite a que se está dando um chega-pra-lá é justamente aquela que sustenta o acerto do internacionalismo, da globalização, do mercado, do liberalismo, que sustenta, na verdade que essas coisas são a expressão mesma da racionalidade.

Muito se tem falado também de uma virada à direita, conservadora. E, de fato, aqueles fantasmas a que me referi acima parecem ter essa cor. Mas ainda seria preciso distinguir a vontade de fechamento nos temas da agenda social, dos direitos, da diversidade, daquela tendência que questiona o bem-fundado da liberação econômica e do império do mercado. Essas coisas podem se encontrar, mas podem vir separadas e ocuparem mundos diversos.

Finalmente, há quem veja em tudo isso uma recusa da democracia ou, ao menos, um retrocesso em relação ao que seriam sociedades democráticas. O problema é que as escolhas de que se trata não só foram feitas pela via democrática como se deram em processos pensados para auferir legitimidade democrática aos resultados. Apenas não se esperava que os resultados fossem esses.

O ocidente estava muito habituado a exportar uma ideia de democracia assim condicionada, “desde que os resultados sejam os que nos agradam”, mas talvez não esperasse ter que colocar em questão as suas próprias democracias por essas mesmas razões.

E essa não é a única crise da democracia ocidental. Esta é hoje, em alguma medida, comparável ao espetáculo de um reality show, onde ganha ou quem combina juventude, beleza e carisma, ou quem melhor fala às paixões dos eleitores, ainda que o faça por meio de palavras vazias ou fanfarronices.

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