De Hiroshima a Teerã


Salem Nasser

20/07/2015



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Little Boy e Fat Man mataram um número estimado entre 150 mil e 250 mil civis

20/07/2015 16:43, atualizada às 20/07/2015 17:28

Em 6 de agosto de 1945 Little Boy explodiu sobre Hiroshima. Três dias depois Fat Man fez o mesmo sobre Nagasaki.

Os nomes dos dispositivos não deixam de ser simpáticos; fazem antecipar talvez dois personagens de alguma história em quadrinho, de algum cartoon pra manter a coerência linguística.

Little Boy e Fat Man mataram um número estimado entre 150 mil e 250 mil civis. Estima-se também que uma metade desses tenha morrido no instante mesmo em que cada bomba explodiu.

Os nomes de cartoon adquirem assim subitamente um sabor de amargo mau gosto; denotam uma leveza, no espírito dos que se aprontavam para o massacre instantâneo, impossível de sustentar, indecente.

E quis o destino que alguns dias antes dos 70 anos de Hiroshima e Nagasaki se fechasse um acordo histórico sobre o dossiê nuclear iraniano.

O mundo parece respirar mais aliviado, ainda que com cautela. A imagem que parece ocupar as mentes é a de que enfim se teria posto uma coleira no pescoço do mal. O mundo é um lugar mais seguro porque se conteve o Irã, é o que não cansam de nos repetir.

O alívio, e também a cautela remanescente, estão fundados em verdades que todos, ou quase todos, pensam dominar a respeito do Irã: a verdade de que o Irã quer sim obter armas atômicas; a de que, dotado de armamento nuclear, o Irã não hesitaria em fazer uso dele; a de que o Irã apóia grupos terroristas que teriam assim acesso a artefatos de destruição em massa…

Recentemente, uma pesquisa de opinião pública teria descoberto que a maior parte da população mundial tem uma imagem negativa do Irã.

A pergunta que ninguém parece se fazer diz respeito à fonte última dessas verdades que pensamos válidas e dessa imagem negativa.

Quando tento traçar a história dessa representação do Irã por nossas bandas, valho-me das memórias pessoais. Começo pelas imagens de fausto que costumava encontrar na nossa imprensa e que traziam a família do Xá Reza Pahlevi como um mistura local de Camelot, Coroa Inglesa e Mônaco.

Não lembro de que abundassem as críticas a um dos regimes mais despóticos que os tempos modernos conheceram.

E logo vêm as imagens da revolução que derrubou o Xá e que implantou a República Islâmica. Ali, a coloração que nos chegava era toda de medo, desconfiança e denúncias de fanatismo, que a partir de então passou a ter entre nós um sinônimo: Xiita.

Na guerra que veio em seguida, entre o Iraque e o Irã, estes dois nos apareciam, respectivamente, como a incorporação do bem e do mal que se digladiavam, o primeiro massivamente apoiado pelo Ocidente.

E quando os crimes de Saddam Hussein contra os civis, iranianos e iraquianos, e contra o direito internacional foram ressuscitados para reclassificá-lo como representante do mal, isso não serviu a reabilitar o Irã.

Nada, na verdade, servia a reabilitar o Irã no imaginário, desde o tempo da revolução e durante todos os anos da discussão do dossiê nuclear.

O processo que leva a essa representação é complexo, mas a essência é facilmente perceptível: nós tendemos a enxergar o mundo exatamente como o establishment norte-americano nos diz que ele é. Há algo que nos leva a naturalizar essa visão de mundo, contra todas as evidências, por vezes.

Nossa percepção de uma revolução demoníaca não se desfaz quando sabemos que 25 anos antes os Estados Unidos derrubaram um governo iraniano democrático e instalaram o Xá como um seu joguete cruel, ou quando sabemos que ao longo das décadas que se seguiram os norte-americanos trabalharam para derrubar o novo regime.

E nossa percepção dos riscos de um programa nuclear iraniano não é posta em dúvida nem mesmo quando sabemos que o Estado que nos atesta o perigo é o mesmo que nos mentiu descaradamente sobre um outro suposto programa de armas de destruição em massa, uma mentira que serviu para justificar a invasão do Iraque e que resultou em mortes possivelmente contadas em milhões.

A força, a credibilidade naturalizada, que nos faz temer uma afirmada propensão iraniana para o mal e para o genocídio, é a mesma que nos impede de ver aqueles dois momentos singulares de 1945, em que com um único gesto se tirou instantaneamente da existência dezenas de milhares de pessoas, como momentos de crime, e que nos impede de ver seus autores como criminosos.

*Salem Nasser é professor de Direito Internacional da FGV Direito SP.

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