Alepo e a arte de abanar o cachorro


Salem Nasser

20/12/2016



Num filme que aqui no Brasil recebeu o nome de Mera coincidência – é um mistério que mereceria estudo o processo de que entre nós resultam os títulos em português dos filmes – Robert De Niro interpreta um personagem misterioso, de cargo e posição incertos, mas poderoso, que contrata um produtor de cinema, Dustin Hoffman, para inventar uma guerra e garantir ao presidente americano suficiente apoio popular para vencer a reeleição e afastar os efeitos do mais recente escândalo que indispôs contra ele a opinião pública.

Juntos eles concebem um conflito na Albânia, uma luta de insurgentes pela liberdade em que haveria um envolvimento de início não confessado das forças norteamericanas, produzem as cenas de batalhas e seus escombros, entre as quais ganha destaque a de uma menina que se protege das balas carregando seu gatinho branco, encomendam uma canção comovente e finalizam com a fictícia volta à pátria e funeral do herói caído na batalha.

O filme é uma peça de ficção; assistindo, estamos autorizados a dizer que aquilo não poderia acontecer na vida real, que algum jornalista mais competente denunciaria com seu trabalho investigativo a mascarada, que ao invés de embarcarem na onda de uma boa estória que vende bem, os mercadores da informação acionariam o mecanismo da dúvida, da desconfiança. Hoje, então, em tempos de internet, redes sociais e smart phones onipresentes, diríamos que tanto a verdade quanto as farsas emergiriam inevitavelmente, nada podendo se esconder da luz do sol.

Por que será, então, além do fato de estar em cartaz na TV a cabo, que esse filme me vem à mente quando me deparo com as notícias sobre os eventos recentes envolvendo Alepo?

O titulo em inglês do filme é Wag the Dog. Uma expressão que, remetendo à estranha circunstância em que o rabo abanaria o cachorro, e não o contrário, pode ser usada para descrever o exercício de chamar a atenção para o acessório ou o fictício e fazer esquecer o principal, ou o verdadeiro.

A guerra na Síria é tragicamente real. Ela tem vários pais e nesse sentido apenas ela é uma criação, mas não é fictícia. Há anos as vidas de vários milhões de pessoas são tocadas pela violência, o desterro foi o destino de mais de um terço da população, os mortos contam quase três centenas de milhares, a barbárie de um islamismo desnaturado se instalou e criou raízes, crimes de guerra e violações de direitos humanos se multiplicaram.

Mas a guerra na Síria é uma realidade cuja verdade nos escapa. Quando, por exemplo, depois de algum tempo, talvez meses, sem prestarmos grande atenção àquele país ou mesmo ao Oriente Médio, somos despertados por uma espécie de alarme midiático que nos diz ser Alepo um tema relevante, qualquer esperança de sabermos o que de fato acontece se perde sob uma névoa de narrativas que não são fruto da imaginação de um produtor de Hollywood, mas são ainda assim repletas de meias verdades, de não ditos, de recursos de retórica e de reprodução acrítica das versões dominantes.

Se li bem, muitas das notícias e das análises dos últimos dias contam uma estória ou nos levam a concebê-la assim:

Alepo até ontem era uma cidade livre do jugo da ditadura, governada por rebeldes democratas, em que vivia uma população que sofria apenas por estar sitiada pelas forças do governo e seus aliados.

Agora Alepo sucumbe, cai, a população é massacrada enquanto tenta fugir, o regime cometendo as piores atrocidades, o Ocidente lamenta o próprio fracasso, a impotência da ONU, qual um Capitão América que faltou ao compromisso da justiça humanitária, permitido uma nova Srebrenika. 

É uma estória de heróis e bandidos, de certo e errado, de luta contra a opressão, de crimes que não soubemos evitar, com uma referência que aponta para um processo de limpeza étnica, ao menos sectária. É uma história que vende bem, mas que tem muito de falso; no que tem de verdade é apenas parcial e vem com uma dose de auto piedade e auto elogio que deixa de indicar onde de fato está a responsabilidade do Ocidente.

Você que acompanhou a cobertura dos últimos dias, sabe quem são os rebeldes de Alepo? Sua impressão seria outra se lhe fosse dito que é essencialmente a Al Qaeda? Você sabe de onde saem os números e as estatísticas sobre o tamanho da população civil sitiada, sobre os crimes e sobre as vitimas? Você sabe se há jornalistas cobrindo os fatos a partir do terreno de batalha? Você sabe dizer se a foto da menina que corre entre os escombros postada por um jornalista da Al Jazeera é a imagem de uma criança de Alepo atingida pela tragédia, ou se é apenas parte de um vídeo clipe gravado por uma cantora libanesa?

É provável que você não saiba. Há muito que eu também não sei. Tudo o que eu posso dizer é que, apesar disto não me autorizar a transformar quem quer que seja em réu, eu tenho algumas convicções construídas ao longo do tempo e por meio de muita observação, e que todas elas são postas em xeque permanentemente pelo exercício da dúvida.

É um exercício complicado este de estar à caça da verdade e de desejar a justiça. É bem possível que não haja inocentes nesta ou em qualquer outra guerra, que não haja heróis cuja causa seja de uma justiça indiscutível.

A batalha de Alepo pode ter definido o curso da guerra e talvez o próprio destino da Síria. Talvez tenha garantido a unidade do país e certamente significou uma derrota para os rebeldes islamistas apoiados por potências estrangeiras. É improvável que ela tenha assegurado a democracia e o império das garantias e liberdades fundamentais.

Essa realidade cinzenta é a areia movediça em que tentamos firmar os pés e talvez escolher lados. Depois de duvidarmos muito, poderemos decidir se falamos da queda de Alepo ou de sua libertação e unificação. Mas só depois de duvidarmos muito.

P.S. Escrevo, sem mencioná-los, no dia em que eventos igualmente importantes e merecedores de reflexão e dúvida vitimaram berlinenses e o embaixador da Rússia na Turquia.

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