Oriente Médio em redemoinho


Salem Nasser

20/10/2014



FMU


Recentemente fui chamado a falar sobre o que alguém quis chamar de guerra de mídias e de mentes no que respeita ao Oriente Médio. Era um convite para tratar das narrativas concorrentes em relação à região e dentro dela, dos modos de perceber e contar os fatos, as suas razões, as justificativas. Esses modos de contar e as várias narrativas se encontram na mídia, mas também em outros lugares, na academia, na opinião pública, nos governos... algumas narrativas são dominantes e outras são marginais.


Eu ofereci então o seguinte ponto de partida para a discussão: era preciso abandonar qualquer esperança de verdade, da Verdade, com maiúscula. O que se terá serão sempre verdades em concorrência.

Essa concorrência entre verdades não atinge apenas as visões de mundo diversas que informam as diferentes leituras que se faz da história e da realidade atual, mas atinge também os próprios fatos. Afinal, quem sabe o que de fato está acontecendo a cada momento em cada lugar do Oriente Médio?

Mas, ainda assim, não há como desistir de buscar a verdade. E o modo de empreender essa busca é aceitar que o caminho será feito de mais dúvidas do que certezas e que deverá se orientar por um senso crítico severo, que nos deve fazer duvidar de tudo que ouvimos e lemos e buscar o máximo de subsídios para montar as nossas pequenas convicções.

E o senso crítico começa com uma percepção aguda de que todos falam de algum lugar, a partir de uma ou várias perspectivas dadas: uma ciência ou disciplina qualquer, uma opção política, um lugar do mundo, um tipo de fazer profissional, uma experiência de vida etc...

Ora, a essa incerteza enorme inerente aos lugares em que vamos buscar a informação e as leituras sobre o Oriente Médio, somam-se as incertezas decorrentes da complexidade das várias dinâmicas que fazem viver a região.

É como um enorme nó de fios emaranhados que, para desembaraçar, é preciso muita paciência. E como são muitos fios entrelaçados, muitas são as opções de lugar por onde começar o exercício, de lugar geográfico ou de lugar temático: podemos começar pela Síria, ou pelo Irã, ou pela Palestina, ou podemos começar pelas disputas políticas, ou pelo tema do islã extremista, ou pela chamada primavera árabe...

Eu resolvi começar num lugar geográfico que é o Líbano, articular em torno dele alguns dos temas que ocupam a região e logo ir fazendo um movimento de espiral que vá abarcando aos poucos o entorno geográfico.

O Líbano é, em muitos sentidos, um espelho ou um condensador da região como um todo.

Primeiramente, ele é ilustração da sua importância histórica já que é testemunha e partícipe das grandes civilizações da antiguidade, berço do surgimento das religiões monoteístas, objeto das cruzadas...

Ele é também parte da centralidade geográfica da região, na conexão entre Oriente e Ocidente. Não tem petróleo, mas é testemunha da centralidade que esse recurso dá ao entorno.

Ele é, em seguida, um exemplo precioso da ação colonial das grandes potências, que já competiam na região com o Império Otomano desde os séculos XVIII e XIX e que operaram a criação do Estado libanês e o desenho de suas fronteiras no início do século XX.

E ele concentra a maior variedade dentre as muitas comunidades religiosas que podem ser encontradas no Oriente Médio e, por isso, inclusive, é um ponto de partida quase indispensável para a discussão tão importante sobre sectarismo.

Pois bem, como todo o mundo árabe, depois de ter sofrido o artificialismo da divisão dos territórios e das fronteiras e do estabelecimento de Estados Nacionais criados pelas potências ocidentais, o Líbano sofreu também as conseqüências do trauma da criação do Estado de Israel no pós-segunda guerra. Ele constitui uma das frentes em que o conflito continua aberto.

Como talvez saibam, o Líbano viveu uma guerra civil que durou de 1975 a 1990, e que foi conseqüência de uma combinação de conflitos sociais, questões religiosas (na época, em grande medida, a guerra era percebida como sendo entre cristãos e muçulmanos) e questões de política regional que tinham em seu centro a postura libanesa em relação à questão palestina. É claro, como acontece sempre na região, todo mundo meteu sua colher nessa guerra civil.

Muitos partidos e milícias tomaram parte nessa guerra; alguns nacionalistas, outros arabistas, outros socialistas e comunistas, outros fascistas, alguns cristãos, outros muçulmanos, alguns laicos.

Paralelamente, permanecia o confronto com Israel que ocupou de modo contínuo, de 1978 a 2000, uma parte do território libanês, no sul, e chegou a invadir e ocupar até a capital em 1982.

Vários partidos e grupos fizeram uma contínua resistência a essa ocupação, mas um acabou se destacando, assumindo a responsabilidade quase exclusiva por essa luta, e conseguindo a saída de Israel da maior parte dos territórios libaneses em 2000.

Esse grupo é o Hezbollah, que nasceu entre 1982 e 1983 e que, desde o início, recusou-se a participar na guerra civil e se concentrou na luta de resistência à ocupação.

O Hezbollah é um grupo de inspiração religiosa – como já indica o nome – e formado essencialmente por muçulmanos xiitas. Sua criação tinha uma relação muito importante com a ocorrência, nos anos que precederam imediatamente, da revolução iraniana que, como sabem, foi uma revolução que acabou se consolidando como uma revolução islâmica, criando uma república islâmica, num pais em que a população é na sua grande maioria xiita.

Ao longo do tempo, o Hezbollah continuará recebendo ajuda iraniana, com o beneplácito da Síria, que tinha entrado, a pedido da “comunidade internacional” no Líbano, em 1976, para manter sob controle a guerra civil, e que mantinha, em grande medida o controle da cena política libanesa.

Ao mesmo tempo em que foi estabelecendo redes de assistência social, escolas, hospitais, o Hezbollah foi incrementando e sofisticando suas capacidades militares. O resultado foi a retirada israelense do sul do Líbano em 2000, o que foi visto como uma vitória sem precedentes na história do conflito.

O processo de fortalecimento continuou incessantemente e isto foi transformando o Hezbollah na força política mais relevante do Líbano. Além de afirmar o grupo como a única ameaça militar relevante e imediata a Israel.

Na medida em que, desde a revolução iraniana, o Irã tinha se transformado no vilão mor aos olhos dos Estados Unidos, objeto de permanente tentativa de enfraquecimento e mudança de regime, e na medida em que o Hezbolla era, com é, um dos elementos que fortalece o Irã, que foram com ele e com a Síria, um eixo de oposição aos interesses americanos e israelenses na região, o enfraquecimento desse eixo tornou-se uma prioridade aos olhos de americanos, israelenses e outros.

Nesse contexto, em 2005, o então ex-primeiro ministro do Líbano, Rafic Hariri, um bilionário sunita (no Líbano, os postos políticos são distribuídos segundo o pertencimento a grupos religiosos...) com ótimas relações com a Arábia Saudita e com vários países do Ocidente foi morto numa explosão.

A conseqüência imediata disso foi, tendo a culpa sido posta na Síria, a saída imediata das forças armadas desta última do Líbano. Em seguida, tendo a acusação sido transferida para o Hezbollah, a pressão sobre este se fez contínua, inclusive com a criação de um tribunal internacional especial.

Nesse momento crítico da morte do Hariri, a divisão latente na sociedade e na política libanesas fez-se explícita e radicalizou-se. As forças políticas dividiram-se em dois grandes campos, que muitos tendiam a ver como pró-ocidental e contra, ou pró-ocidental e pró-síria...

Os dois campos contêm elementos de todas as filiações religiosas libanesas. O desequilíbrio nessa distribuição se encontra apenas nas duas comunidades islâmicas majoritárias (as duas maiores comunidades singulares no pais), os sunitas e os xiitas que estão, respectivamente, essencialmente, alocados no primeiro e no segundo grupos.

Em 2006 houve um confronto militar de pouco mais de um mês entre Israel e o Hezbollah. Muitos leram isso como, essencialmente, uma tentativa de dar um golpe fatal no eixo da resistência, destruindo as capacidades do adversário militar, como dito, mais imediato e mais concreto.

O resultado militar foi surpreendente, Israel tendo se revelado incapaz de enfrentar de modo eficaz o tipo de guerra de guerrilha que faz o Hezbollah, incapaz de manter a ocupação de território libanês por períodos mais longos e incapaz de impedir os lançamentos de foguetes que se transformaram em eficiente instrumento de equilíbrio de forças.

O Hezbollah e seu aliados saem mais uma vez fortalecidos, ainda que a divisão interna continue radicalizada. É desnecessário dizer que, em grande medida, por razões que em parte são naturais e em parte são trabalhadas, a oposição interna entre os dois grupos é por muitos representada como essencialmente ou ao menos em grande medida um problema entre xiitas e sunitas.

Começam assim, em alguns setores, tentativas de desenvolver no Líbano instancias de poder militar sunita (ou seja, milícias) que possam fazer equilibrar as relações de poder com o Hezbollah.

Hoje, com a emergência em força do Estado Islâmico e seus parentes, eles têm tentado incursões em território libanês, onde algumas chamadas células dormentes são ativadas e onde, em alguma medida, às vezes esses grupos encontram alguma receptividade por parte de populações sunitas que os vêem como contraponto ao poder xiita.

Esses grupos armados de inspiração islâmica radical sunita, de que o Estado Islâmico é apenas a versão mais bem acabada, e que bebem na mesma fonte que a Al Qaeda, encontraram a oportunidade de ouro para prosperarem e se transformarem em exércitos bem armados, bem treinados, bem financiados, com militantes vindos do mundo inteiro, no processo caótico da chamada primavera árabe.

Mas antes mesmo disso, o terreno já se fazia fértil no Iraque pós invasão americana, lugar em que a Al Qaeda no Iraque se transformou no Estado Islâmico.

Já estando em operação no Iraque por algum tempo, o Estado Islâmico, junto com outros grupos de igual inspiração, cresceu em importância quando passou a atuar na Síria, na tentativa de derrubar o regime ali.

Como se sabe, o processo da primavera síria começou quase ao mesmo tempo que os demais na região, na passagem de 2010 para 2011. E como se sabe o comportamento dos países ocidentais, da “comunidade internacional” e de vários atores da região, foi diferente segundo o país de que se tratasse.

No caso da Síria, houve de pronto, por parte desses atores, uma decisão de apoiar as revoltas para a derrubada do regime.

Perceba-se que isso estava inspirado sobretudo pela posição central da Síria como membro do eixo da resistência, de sua aliança com Irã, com Hezbollah, seu apoio ao Hamas...

Por isso mesmo, o revolta na Síria tomou muito cedo a forma de combates armados e, isto é central, é por isso que ali os grupos do tipo EI prosperaram aproveitando o apoio financeiro, o fornecimento de armas, a ajuda logística ou simplesmente a tolerância silenciosa de países da região ou de fora dela.

Há quase três anos, eu, por exemplo, tenho tentado chamar a atenção, em meio aos debates que tendiam a naturalizar as representações da crise síria como a resposta violenta de um regime ditatorial contra civis desejosos de democracia, para a ação desses grupos armados e extremamente violentos, sem muito sucesso.

Foi por conta do avanço desses grupos que o Hezbollah libanês passou a agir na Síria, na tentativa de evitar que ficasse bloqueado o apoio que sempre recebeu da Síria, e do Irã através da Síria, e para evitar que os grupos pudessem chegar com facilidade ao Líbano.

Essa entrada vai servindo a fortalecer a representação que muitos fazem de toda a coisa como essencialmente uma disputa, milenar mesmo, entre sunitas e xiitas.

Muitos estendem essa chave para interpretar o comportamento dos Estados do entorno em relação à Síria e ao Estado Islâmico: Turquia, Jordânia, os países do Golfo, Emirados, Catar, mas especialmente a Arábia Saudita.

Pessoalmente, penso que antes de ser uma questão sectária, que existe e tem seu peso, a disputa é essencialmente política. Esquematicamente, ainda que os atores sejam muitos e que os projetos de poder também o sejam, fundamentalmente é possível ler a coisa como uma disputa de dois países por influência na região.

A Arábia Saudita percebe, também porque é uma aliado e um cliente importantíssimo dos Estados Unidos, o Irã como seu concorrente na corrida pelo lugar de potência regional.

Essa disputa se faz sentir cotidianamente na política libanesa, mas ficou aguda no que respeita aos eventos na Síria. O Irã sustentou desde o início o regime, enquanto a Arábia Saudita apoiou intensamente todos os que lutavam contra ele, entre esses o Estado Islâmico.

É claro que é muito difícil certificar precisamente os tipos de ajuda, mas uma coisa é possível dizer com razoável certeza: o pensamento que carregam esses grupos tem como fonte fundamental a escola Wahabita que é avançada pela Arábia Saudita.

Não é surpresa, portanto, que tantos envolvidos com Al Qaeda e seus sucedâneos sejam sauditas ou financiados por sauditas.

Isso é verdade desde Bin Laden. E é importante lembrar que Bin Laden e outros receberam durante muito tempo apoio direto americano na medida em que eram vistos como bons opositores à União Soviética no Afeganistão e eventualmente outros inimigos.

O germe que vai dar no EI é, portanto, mais antigo do que muitos imaginam e as suas fontes intelectuais, se não forem também materiais, são conhecidas.

Deixou-se que florescesse nos últimos anos para que dessem conta do regime sírio e fragilizassem o Irã, neutralizassem o Hezbollah e desetabilizassem o Iraque que ia se colocando como novo aliado do eixo da resistência...