Guerra de Mí­dias e de Mentes


Salem Nasser

14/10/2014



Mídias e Mentes

INSTITUTO DE ESTUDOS GEOPOLÍTICOS DO ORIENTE MÉDIO
L’HOTEL

Começo agradecendo a gentileza que me fazem os organizadores deste evento e criadores deste novo instituto e a confiança que quiseram depositar em mim para falar justamente neste momento inaugural de uma iniciativa tão importante. Espero estar à altura.

O tema geral que me foi confiado era o da guerra das mídias e das mentes. Foi-me dada a liberdade para interpretar o tema e fazer escolhas dentro dessa moldura geral. As escolhas que fiz são o que vocês ouvirão a seguir.

Um instituto como o que começa hoje se propõe a jogar um olhar sobre o Oriente Médio, a interpretá-lo e a explicá-lo. Ele fará todas essas coisas a partir de um certo lugar, ou a partir de alguns lugares específicos. Ele fará essas coisas a partir de perspectivas específicas, que podem ser de naturezas diversas.

Uma dessas perspectivas diz respeito à disciplina ou à ciência que fundará o olhar; o fato dos estudos serem geopolíticos inscreve o olhar no campo da ciência política, das relações internacionais entendidas como campo de competição e de conflito. Isso pode indicar que os idealizadores reconhecem como chave fundamental para entender o Oriente Médio esta das grandes relações de poder que organizam o mundo.

Mas, para além dessa chave teórica, talvez seja possível adivinhar também uma escolha de perspectiva que diz respeito à orientação do olhar e da leitura que se quer fazer do Oriente Médio e que aqui talvez pudesse receber a qualificação genérica de “alternativa”, ou seja, uma leitura que funcione em alguma medida contra ou diferentemente das leituras de curso hegemônico.

Em resumo, haveria uma opção por interpretar e explicar as dinâmicas da geopolítica do Oriente Médio de modo menos usual por nossas bandas; participar da guerra das mídias e das mentes, da guerra de narrativas, trazendo explicações alternativas.

Começo dizendo que acredito que esse seja um exercício necessário, mas junto com isso eu digo que é preciso abandonar qualquer esperança de encontrar ou expressar a Verdade. Isto é, se estivermos procurando por ela...

Talvez seja possível dizer que no mundo há os que buscam verdades (ou alguma verdade) e há os que fabricam e vendem verdades para que muitos as consumam sem saber nem se perguntar em que cozinha e com que ingredientes foi feito aquilo que comem.

Nesta guerra, é preciso saber como se fabricam as verdades, como são vendidas e por que compram os que as consomem.

Mas eu me recuso a fabricar qualquer coisa e só me interessa vender aquilo em que acredito. Entre os que lidam na propaganda e os que lidam com o debate, estou com estes últimos.

Para quem faz propaganda, a existência ou não da verdade é irrelevante. Para os que acreditam no debate, talvez não possa ser.

Pois bem, a Verdade não existe, creio eu, e por isso não será encontrada. Ainda assim, não se pode desistir de buscar a verdade. É uma busca trágica, em certo sentido, porque essa perseguição de um objeto que nunca será alcançado será feita de poucas e pequenas certezas e de cada vez mais numerosas dúvidas.

Estar verdadeiramente à busca da verdade é aceitar a dúvida constante e é olhar para tudo com um olhar crítico, desconfiado, se quiserem.

Antes até de jogarmos este olhar desconfiado para as narrativas que encontramos, para as chaves de leitura que nos explicam o mundo, é preciso direcionar a dúvida para os próprios fatos, para o que acontece ou deixa de acontecer nas várias arenas do que queremos entender.

Essa incerteza sobre os fatos foi um ponto de partida constante para mim ao longo destes últimos anos quando se tratava de analisar o que se veio chamando de primavera árabe: quantos eram os manifestantes? quem deu início à violência e quem atirou nos manifestantes? quantas são as vítimas e quantas são civis? quem é responsável pelas mortes? E era possível multiplicar indefinidamente esse tipo de pergunta.

Para algumas delas era possível coletar, cotejando fontes, buscando, algumas respostas mais confiáveis, mas nunca à prova de qualquer refutação. Se avançava com pequenas certezas, mas continuavam vivas as dúvidas.

Naquilo que talvez estejamos chamando de guerra me incomodava sobretudo o fato de que, diante da mesma realidade complexa, havia uma tendência a naturalizar algumas respostas, algumas certezas, em detrimento de outras e eliminando qualquer dúvida.

Alguns vendiam algumas verdades e muitos as compravam acriticamente. Eu considerava que a Verdade, que não existe, estava mais próxima da dúvida do que das certezas naturalizadas. E eu prestava serviço à verdade nutrindo a dúvida.

Aos fatos das circunstâncias, conjunturais, somam-se os fatos históricos e em relação a estes também cabe a dúvida e muitas vezes ocorre a naturalização. E os fatos de um e de outro tipo compõem narrativas mais amplas, que são modos de comunicar e dar significado à própria experiência, de expressar a visão de mundo e a relação entre a sua experiência e o mundo.

Sem poder entrar em detalhes, o que me libera de revelar o caráter ainda tentativo das minhas conclusões, talvez seja possível dizer que em relação à político do Oriente Médio competem a narrativa da democracia e da civilização, aquela do pragmatismo e da moderação e aquela da resistência e da autonomia.

Mais ilustrativo, talvez, para o tema da guerra, seja o confronto, no que respeita à questão fundamental da Palestina, entre a narrativa israelense, que engloba muitas coisas mas que tem em seu centro a força da tragédia do povo judeu, e a narrativa palestina fundada na tragédia duradoura do povo palestino.

Esse confronto particular ilustra bem o que eu gostaria de enfatizar no que diz respeito à competição entre narrativas. Estamos diante, de um lado, de uma narrativa extremamente bem trabalhada, constantemente reconstruída e reafirmada e muito sofisticada nos seus meios de produção e de comunicação.

Do outro lado, estamos diante de uma narrativa que, por mais forte que seja na sua essência, está sempre correndo o risco do esquecimento, perde-se como se as palavras fossem levadas pelo mais leve vento. A história mesma vai se perdendo.

O caso palestino é a ilustração mais forte desta verdade de que aquilo que não tem história ou não a consegue recuperar ou não a pode contar, corre o risco de não existir.

A necessidade de trabalhar e sofisticar as narrativas próprias é portanto uma questão existencial e nisto o universo dos alternativos tem feito um trabalho pobre.

Se não fizer diferente, continuará subjugado pela sina que Edward Said denunciou em seu Orientalismo, a de ser contato pelo outro, sem ter direito a voz própria.

O trabalho em cima da narrativa é também necessário se se quiser vencer os muros que são erigidos para barrar qualquer verdade alternativa ou qualquer leitura alternativa da realidade.

Exemplos desses muros são também especialmente evidentes no que concerne à questão palestina. Vejam o que ocorreu ao longo dos últimos ataques a Gaza: os fatos mais explícitos do que acontecia no terreno eram vítimas de um esforço de apagamento e de enterro debaixo das bandeiras da narrativa do antissemitismo, da legítima defesas, dos escudos humanos etc.

Para combater esses muros e para recuperar a voz, é preciso nutrir a narrativa e sofisticar a sua comunicação.

E para fazer isso, é preciso muita atenção aos públicos a quem as diferentes perspectivas e as diferentes narrativas devem ser apresentadas e é preciso especial atenção à linguagem que esses públicos entendem.

Nós, os alternativos, temos falhado muito no domínio da linguagem e dos canais. Tendemos por vezes a recusar o mainstream como um não interlocutor, mas precisamos fazer justamente o contrário, temos que levar a batalha até ele, mas para isso é preciso muito trabalho.