UMA REGULAÇÃOO PRIVADA DA CENSURA?


Salem Nasser

14/07/2021



Facebook, Instagram, Twitter, Youtube, TikTok têm o poder de decidir quem se comunica e quem fica excluído da comunicação? Têm o poder de decidir os conteúdos cuja circulação é permitida e aqueles que serão excluídos ou restritos? Essas são perguntas atinentes, digamos, à capacidade dessas empresas e à possibilidade tecnológica à sua disposição para operar,  excluir e gerenciar os fluxos.

Sendo as respostas positivas, como são de fato, impõe-se uma outra pergunta: o que, ou quem, dá a essas empresas a legitimidade para exercerem esse poder? E a isto se acopla ainda uma interrogação fundamental: sendo a circulação de ideias e de informação, o processo mesmo da comunicação social, um bem público, um tema de interesse público, quem exerce o controle sobre essas atividades de regulação e de decisão que as empresas realizam privadamente? Mais relevante ainda, quem exerce esse controle sobre a limitação que entes privados podem impor a um direito fundamental que é o da livre expressão?

Num mundo em que o Direito produzido pelos Estados, quer seja o nacional, quer o internacional, é visto como gradualmente substituído – e com vantagem, diriam muitos – por um fenômeno mais fluido e mais incerto chamado Governança, essas perguntas, sobre quem fiscaliza a ação reguladora exercida por atores vários, distribuídos pelo mundo, muitos deles privados, e sobre as fontes de legitimidade dessa ação reguladora, são cada vez mais necessárias. Mas, nem sempre são feitas.

Recentemente, vimos um ex-presidente dos Estados Unidos ser banido de várias redes sociais. São as próprias empresas as autoras das regras que teriam justificado o banimento; as regras não precisam ser públicas ou passar por algum crivo social ou estatal; a decisão de banimento é delas e apenas delas[1]. O fato de ser o banido uma figura pública é apenas um elemento a chamar a atenção para o caso. Mas a perplexidade deveria ser a mesma para qualquer outro banido, por mais anônimo que fosse.

É interessante observar que houve quem argumentasse que o banimento não configurava violação da liberdade de expressão, já que essa liberdade, protegida pelo sistema jurídico em que inseridas as empresas, segundo esse mesmo ordenamento, só poderia ser violada pelo Estado[2]. O privado pode, portanto, enquanto domina efetivamente o espaço da comunicação, aquilo que é vedado ao Estado que já não pode controlar esse mesmo espaço!

Também recentemente, debateu-se intensamente – ainda que não tão intensamente nas próprias redes sociais, por razões compreensíveis – a censura operada por essas redes, de conteúdos, palavras, imagens, usuários, no contexto da violência que explodiu entre palestinos e israelenses[3]. Algo parecido é levantado por movimentos que militam contra o racismo e mesmo por movimentos políticos conservadores que pretendem denunciar vieses dessas redes ou a sua penetração por determinados interesses[4].

As respostas que as empresas oferecem a essas acusações vão da invocação de falhas técnicas a justificativas fundadas na exclusão de discursos de ódio, de incitação à violência, ao crime etc. que os algoritmos devem controlar.

Resta, no entanto, que os códigos de boa conduta e os mecanismos de controle, algoritmos incluídos, são produção dos entes privados e são produtos de tal complexidade que é difícil ao ator externo, ainda que seja este o Estado, compreender e menos ainda vigiar.

Os discursos naturalizadores das benesses da Governança sem Governo, e da Regulação Privada por extensão, ao não contemplarem essas perguntas fundamentais sobre controle e legitimidade, esquecem que toda regulação social é concomitantemente objeto e instrumento de jogos de poder[5].

[1] MACLAREN, Selina. Is There a First Amendment Right to Tweet? 2021. Disponível em: https://daily.jstor.org/is-there-a-first-amendment-right-to-tweet/. Acesso em: 06 jul. 2021.

[2] PHILLIPS, Amber. No, Twitter is not violating Trump’s freedom of speech. 2020. Disponível em: https://www.washingtonpost.com/politics/2020/05/29/no-twitter-did-not-violate-trumps-freedom-speech/. Acesso em: 06 jul. 2021.

[3] ALSAAFIN, Linah. Palestinians criticise social media censorship over Sheikh Jarrah. Disponível em: https://www.aljazeera.com/news/2021/5/7/palestinians-criticise-social-media-censorship-over-sheikh-jarrah .Acesso em: 06 de julho de 2021

[4] DWOSKIN, Elizabeth. Facebook’s AI treats Palestinian activists like it treats American Black activists. It blocks them. Disponível em: https://www.washingtonpost.com/technology/2021/05/28/facebook-palestinian-censorship/  . Acesso em: 06 de julho de 2021.

[5] NASSER, Salem Hikmat; GHIRARDI, José Garcez. O que se diz e o que se cala: a governança entre a fuga do direito e a busca pelo controle. Revista do Programa de Pós Graduação em Direito – Nomos, Fortaleza, v. 38, n. 2, p. 731-743, jul./dez., 2018. Disponível em: http://www.periodicos.ufc.br/nomos/article/view/39812/95992. Acesso em: 13 jul. 2021.