Se a pobreza fosse um homem


Salem Nasser

15/01/2016



Se a pobreza fosse um homem eu o mataria!

Enquanto me preparava para a troca de ano, por vários dias essa frase me martelava à cabeça.

A fala é comumente atribuída a Ali Ibn Abi Taleb, primo e genro do profeta Mohamad, quarto dos Califas do Islã e primeiro dos Imams em que acreditam os Xiitas.

Para mim, a frase sempre ajudou a evidenciar a localização da justiça social no cor dos objetivos e da identidade islâmicos. A violência do tom, aliada ao sentido da afirmação, revelava a intensidade da revolta que se vê já tocada pela frustração da tarefa impossível; afinal, a pobreza não é um homem.

O gatilho que desta vez fez com que as marteladas desse signo de revolta e frustração se prendessem à minha mente foi um conjunto de cenas, ficcionais, que traziam a pobreza se abatendo sobre uma família, impedindo que a mãe pudesse proteger a si mesma e a seu filho do frio e da doença, fazendo com que a criança não tivesse o suficiente para comer, matando a esperança quando o bebê morre porque não havia como pagar o médico, jogando desonra sobre a família quando o pai busca por meios indignos conseguir dinheiro.

Era ficção, mas é tantas vezes verdade.

Relendo O Idiota, de Dostoievski, a figura de Marie, esta moça vitimada pelo engano, pelo preconceito e pela miséria, cuja queda só é em parte redimida pela compaixão de um idiota e de crianças que, tendo agido com grande crueldade, invertem o curso da própria ação, reforçou-se em mim essa impressão sobre a pobreza.

Percebo, no entanto, como essas impressões fortes são dependentes da dramatização da tragédia da pobreza. Ao que parece, para que nos toque melhor, a pobreza precisa ser posta em cena, contada, como no teatro, de modo a despertar os nossos sentidos. Sentidos que permanecem dormentes quando tropeçamos na mesma tragédia da pobreza real, na esquina de casa, sem que lhe notemos os traços trágicos.

No conto Três Mortes, Tolstoi descreve as diferenças entre a morte de uma senhora da aristocracia, cercada de drama, choro, rituais, agito e pessoas, e o fim de um cocheiro que, ainda que bem quisto, ninguém tem, à noite, no frio, em busca do pouco descanso antes de voltar à labuta, tempo ou disposição para ver morrer ou lamentar.

Apenas nós, por graça de Tolstoi, registramos, na ficção, o drama da morte do pobre. E o drama aqui está também em que na realidade do pobre este drama passa sem registro.

Talvez Tchekhov tenha resumido tudo na história (Angústia) do cocheiro que durante a noite de trabalho – porque não se pode parar de trabalhar – precisa contar a alguém que seu filho morreu, mas não encontra quem queira ouvir. Ao cocheiro não é permitido colocar em cena a morte do filho e este é o drama que o autor nos convida a enxergar na pobreza daquele homem.

O colocar em cena parece recuperar a dignidade dos seres submetidos ao sofrimento e às provações da pobreza, ou parece emprestar-lhes essa dignidade.

A pobreza real, e esta é a suprema tragédia, parece despir esses seres de qualquer dignidade. O real não é o filme que queremos assistir nem o livro que queremos ler.

*Salem Nasser é professor de Direito Internacional da FGV Direito SP.

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