O combate ao Estado Islâmico é uma ficção
29/11/2015
Salem Nasser tem um contato estreito com o Oriente Médio. Nascido em São Paulo, filho de imigrantes libaneses, ele tinha apenas seis anos quando foi enviado pela família para estudar em um internato de Marjayoun, uma cidade do sul do Líbano, região do país conhecida como ponto de convivência entre cristãos e muçulmanos xiitas. No colégio, laico, também estudavam três de suas irmãs: Raja e Wafa, mais velhas que Salem, e Hana, mais nova. “Como boa parte dos imigrantes, meus pais tinham a fantasia de um dia voltar para o Líbano. Queriam então que fôssemos educados em árabe”, lembra Nasser. Nos finais de semana, os irmãos costumavam ir à casa do avô materno, um militar aposentado que vivia em Marjayoun. Às vezes, visitavam o vilarejo onde tinham nascido seus pais, a 15 minutos de carro de Marjayoun. Dois anos depois, quando Nasser e suas irmãs passavam férias no Brasil, eclodiu a Guerra Civil Libanesa (1975-1990). O plano de estudos em Marjayoun teve de ser abandonado, mas Nasser jamais perdeu o vínculo com a região de sua família. À curiosidade natural pelos temas do Oriente Médio e à convivência com a comunidade árabe do Brasil e do Paraguai, somou-se uma sólida formação, que incluiu um doutorado em Direito Internacional.
Aos 48 anos, Nasser é advogado, especialista em Direito Internacional, professor da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas, presidente do Instituto da Cultura Árabe e colunista da Brasileiros. Habituado a participar de debates sobre os temas que incendeiam o Oriente Médio, ele não chegou a ser surpreendido pelos ataques do Estado Islâmico em Paris. “Passei uns dois anos falando em todos os debates que o regime da Síria estava lutando com grupos do radicalismo mais profundo. Eu nomeava a Jabja al-Nusra e o Estado Islâmico. Dizia que, entre todos os chamados oposicionistas, eram esses os caras que estavam fazendo o trabalho militar”, lembrou o professor. Enquanto isso, o Ocidente parecia mais atento à oposição síria capitaneada pelo Exército Livre da Síria. “O mundo só pareceu acordar para a existência do Estado Islâmico quando ele tomou Mossul, no Iraque, há mais de um ano, e se aproximou do Kurdistão iraquiano”, afirma Nasser. Muito antes disso, desde 2011, o grupo já agia fortemente na Síria. Enquanto esteve restrito ao Iraque, entre 2004 e 2011, o grupo se chamava Al Qaeda do Iraque. Depois que atravessou a fronteira com a Síria, passou a ocupar terreno nos dois países, cresceu e se transformou em Estado Islâmico. Para o advogado, a coalizão liderada pelos Estados Unidos para combater o Estado Islâmico não atuava efetivamente nesse sentido, pois sua principal meta na região ainda parece ser derrubar o presidente da Síria, Bashar al-Assad.
Brasileiros – Os ataques em Paris surpreenderam você ou já imaginava que em algum momento o Estado Islâmico atacaria o Ocidente?
Salem Nasser – Em algum momento iria acontecer. Não tem muita dúvida. Quando acontece, fica o impacto da novidade, o choque, mas não se pode dizer que aquilo fosse uma surpresa terrível. Uma vez alguém me disse que, quando se leva a violência a alguns lugares, não se deve ficar surpreso caso a violência volte de algum modo.
Como o Estado Islâmico se estruturou? Verdade que cresceu com a ajuda do governo sírio?
Não acredito tanto nesta teoria. Há uma narrativa pela qual a Síria teria soltado das prisões militantes islamitas que estavam encarcerados por razões políticas. Teria soltado essas pessoas para que se instalasse um ambiente violento e o governo pudesse dizer que estava lutando contra radicais islâmicos terroristas. Talvez tenha soltado essa gente das prisões. Não consigo confirmar. Acho até possível, mas não acredito que tenha trabalhado para que esse grupo crescesse, até porque não era o único grupo. Antes do Estado Islâmico, começou a agir na Síria a Jabja al-Nusra, que é ligada ao Al Qaeda. O Estado Islâmico demorou para tomar a frente sobre a Jabja al-Nusra.
O que possibilitou ao Estado Islâmico se instalar em território sírio?
Todos têm território. Quando um grupo insurgente entra em guerra com forças oficiais conquista território e passa a mandar no lugar. A Jabja al-Nusra também fez isso. Tem uma parte do território que ela domina ou em que está muito presente. O mesmo acontece com grupos menores, ainda que comandem apenas um vilarejo. A novidade é que o Estado Islâmico teve maior sucesso em conquistar território no Iraque e na Síria. Além disso, resolveu se chamar Estado Islâmico, o que remete à ideia de que teria alguma soberania, de que teria um governo.
Existe uma máquina de governo funcionando. Os campos de petróleo continuam sendo explorados?
Eles têm essa estrutura, cobram impostos. A vida segue, ainda que a maior parte das pessoas tenha saído do território. Se o Estado Islãmico não prestar serviços, os que ficaram irão embora. Pelos meus dados, eles talvez dominem metade do território sírio. Mas a maior parte da Síria urbana, das cidades, não desérticas, está com o governo. Por uma estimativa em que tendo a confiar, a população síria é de mais ou menos 22 milhões de habitantes, sendo que quatro ou cinco milhões deixaram o país. Estão no Líbano, na Turquia, na Europa. Dos 16 ou 17 milhões que se encontram na Síria, boa parte está deslocada internamente. A organização Médicos Sem Fronteiras fala de sete milhões de deslocados internos. Mudaram de uma região para outra. De qualquer forma, entre 80% e 90% da população está hoje em cidades governadas pelo regime sírio. Então, sob o estado islâmico seria um residual da população.
E essa população pode sair?
Ela não conseguiu fugir até agora. Não tem para onde ir. Alguns podem ter alguma simpatia pelo pensamento radical. Ou preferem não abandonar suas casas e obedecer aos novos poderosos. Preferem ficar a virar refugiados. Há uma lenda correndo no Ocidente de que esses grupos só se instalam em lugares em que a população os aceita muito bem. Não acredito muito nisso.
Eles têm base social?
Acredito que nos territórios ocupados pelo Estado Islâmico o que há é mesmo aquele residual da população que citei. Um sinal disso é que muitas vezes, quando cerca alguma região tomada por esses militantes, o Exército da Síria fecha um acordo. Deixa esses militantes irem embora, com a condição de que eles permitam que a população saia da cidade. Eles liberam a cidade. Faz-se uma trégua. Senão, qual seria a alternativa? Matar todo mundo.
O Estado Islâmico formou de fato um califado?
A questão do califado está ligada à figura do califa, que é basicamente o sucessor do profeta. Pelo menos os primeiros quatro califas eram ao mesmo tempo os líderes religiosos e os líderes seculares, governantes. A partir do momento em que o Império Muçulmano fica muito grande, há uma tendência à separação concreta do poder temporal, que fica na mão do sultão, o líder militar, civil, político. O califa se torna a referência religiosa, mas muitas vezes desprovido de poder político real. Essa figura permaneceu presente ao longo da história do Islã, até o começo do século 20, quando o califado foi abolido por Atatürk (Mustafa Kemal Atatürk, fundador da República da Turquia).
Como os integrantes do Estado Islâmico veem o califado?
Eles têm uma representação que é deles, falsa em relação à realidade, de que vão ressuscitar os primeiros tempos do Islã. Eles acreditam que vão voltar para o tempo da vida do profeta, para o governo do Islã puro, antes de ele ter se transformado, se degenerado, etc. Eles pensam voltar ao califado islâmico dos primeiros tempos.
E o que Abu Bakr al-Bagddadi, o líder do Estado Islâmico, tem que as pessoas acreditam ser ele o califa?
No mundo árabe, quando a sucessão política não se dá por eleição, ela ocorre pela mescla de indicação e consenso. O líder precedente aponta seu sucessor, que é legitimado por consenso. O que significa esse consenso? Significa que a comunidade presta lealdade ao novo líder. O que legitima Abu Bakr al-Bagddadi é que as pessoas chegam e dizem: “Reconheço você como califa”. Vem um grupo, como o Boko Haram, da Nigéria, e presta lealdade a ele. Outro grupo pequeno, que está lutando na Síria, avisa: “Quem está mandando hoje é o Estado Islâmico”. O homem vai recebendo reconhecimento por parte de outras lideranças, que o colocam na condição de guia. O prestígio de Abu Bakr al-Bagddadi vem do fato de que o Estado Islâmico é o grupo que obtém mais vitórias militares, mais dinheiro. Daí, vai conquistando mais fidelidade.
Por isso o título de califa?
O papel de califa é autodeclarado. Ele diz: “Eu sou o califa”. Os outros respondem: “OK, a gente acredita”. Mas isso não é algo que todo mundo reconhece. No mundo islâmico, mais de 99% das pessoas vão dizer que Abu Bakr al-Bagddadi não é o califa. E os que acreditam dizem: “OK, você é o califa”.
Os que acreditam são as lideranças muçulmanas vinculadas ao terror?
Tem duas variáveis aí. Saber o que é terror. E o que se reconhece como terror, saber quem está ligado ao terror.
O grupo Boko Haram, por exemplo, você considera terrorista?
Eu não uso a palavra. Quase não uso. Hoje em dia sou quase forçado a usar, mas não uso. A questão do terrorismo é uma questão de legitimidade do uso da força e dos meios de violência. Para mim, essa é a chave do terrorismo. A violência é legítima ou não? O meio usado é legítimo ou não? Qual o critério da ilegitimidade, será a condição civil da vítima, a situação de quem comete a violência, a intenção de provocar o terror, a motivação política?
Na sua opinião, é legítimo matar civis?
Tomar os civis por alvos é sempre ilegítimo e ilegal, mas sempre morrem civis em guerras e alguém tenta legitimar essas mortes de algum modo. Alguém dirá, por exemplo, que um ataque suicida em praça pública é terrorismo e é ilegítimo, mas que um ataque por avião não tripulado que mate mulheres e crianças será legítimo se tiver por alvo declarado um terrorista e não será ele mesmo um ato terrorista. E haverá quem diga algo diferente.
Você apoia a violência?
Às vezes a violência é inevitável e meu apoio ou não é indiferente. Por exemplo, a violência na legítima defesa é inevitável. Apoio a violência na legítima defesa. O problema é que muitos abusarão do conceito de legítima defesa para se autorizarem qualquer violência injustificada.
E ataques a alvos civis?
Não, nem quando eles são feitos pelos Estados Unidos nem quando são feitos pelo Estado Islâmico. Nem em Paris, nem em Beirute, nem em Bagdá, nem em Damasco, nem em lugar nenhum. Meu problema com a noção de terrorismo não é uma recusa da ilegitimidade da violência, mas sim com o uso que se faz da palavra. O problema é que existem os distribuidores da etiqueta terrorismo. Não sou eu nem é você quem vai definir quem são os terroristas. Essa etiqueta virá pronta para a gente.
De um país central?
Dos Estados Unidos e outros que fazem as listas de grupos terroristas. Então, há os donos das etiquetas. Se eu sair usando a etiqueta, assumo o discurso do distribuidor de etiquetas. A outra coisa é que quando se cola a etiqueta do terrorismo sobre alguém, despiu-se esse alguém de todos os seus direitos. Hoje em dia, na retórica ocidental, se o cara é terrorista ou se ele é suspeito de terrorismo, pode-se torturar, matar sem perguntar, matar a família dele, destruir a casa dele. Desde que se diga “esse cara é terrorista”, pode-se fazer dele o que quiser. Por isso, é uma palavra muito perigosa. Mas isso para dizer que, usando ou não a palavra, para mim, o que Estado Islâmico faz é um absurdo. É barbárie. É uma violência totalmente ilegítima. Os meios que eles usam são ilegítimos. Os alvos não são legítimos. A justificação não é legítima e por isso mesmo eles são um grupo perigosíssimo.
Um aspecto que impressiona em relação ao Estado Islâmico é a capacidade que ele tem de atrair jovens nascidos no Ocidente. Por quê?
Muitos europeus têm ido lutar com o Estado Islâmico e com outros grupos. O Estado Islâmico talvez venha tendo mais sucesso. Há a informação de que, no começo, a maior parte dos europeus viajava para se juntar ao outro grupo que mencionei, a Jabja al-Nusra. Só depois eles passavam para o Estado Islâmico. É bem provável que eles estejam distribuídos em vários grupos. De todos os nacionais europeus, os franceses são os mais numerosos. Eles representam 20% ou 30% dos europeus que estão lutando na Síria.
Há uma estimativa do número de europeus combatendo na Síria?
Com o Estado Islâmico haveria dez mil estrangeiros, não só europeus. Há americanos, asiáticos. Dos dez mil, pelo menos dois mil são franceses. A maior parte deles é de muçulmanos descendentes de imigrantes, mas há muitos convertidos. Portanto, franceses franceses. Ingleses ingleses. Eles não são da comunidade imigrante. O conjunto de elementos que ajuda a atraí-los varia de pessoa para pessoa. Ao final, é uma decisão individual. As razões genéricas têm a ver com o sentimento de não pertencimento por fazer parte de uma comunidade de imigrantes que é marginalizada, que não tem acesso às mesmas oportunidades. A Europa tem que aceitar que hoje sua identidade inclui esses muçulmanos, os africanos, os imigrantes e os filhos dos imigrantes. Eles fazem parte da identidade europeia, embora o tempo todo lhes seja dito que não pertencem ao lugar. Não só lhes é dito, mas também eles vivem isso como uma situação subjetiva.
Como?
É vivido objetivamente, na falta de oportunidades, na marginalização econômica, mas é vivido também internamente. Sendo filho de imigrantes, não se pertence mais ao lugar de onde veio o pai. É como se a pessoa não tivesse um chão em que pudesse pisar. Esse fator acaba sendo um solo fértil de uma determinada condição psíquica. A pergunta é: “Onde eu me encontro?”. Muitas vezes a exacerbação da identidade islâmica é percebida pelo indivíduo como uma resposta. É o que o psicanalista Fethi Benslama chama de super muçulmano. No livro A Guerra das Subjetividades no Islã, que por enquanto só está publicado em francês, ele diz que a pessoa pode passar por um processo de superidentificação com a religião e que isso não tem a ver só com a condição de imigrante. Fethi Benslama diz que isso atinge todas as comunidades muçulmanas, com muita força, desde os anos 1970.
Por quê?
Seria uma consequência do contato do Islã com o Iluminismo, a partir do momento em que o universalismo islâmico perde lugar para um outro universalismo, o da racionalidade lógica. E isso passa a ser sentido com muita força depois do final da era colonial, ou seja, depois dos anos 1970. A colonização tem algo de muito importante a ver com isso. Estou simplificando, mas Fethi Benslama diz que isso explica o surgimento do supermuçulmano, daquela pessoa que super se identifica com o Islã, que passa a vestir as roupas, a rezar mais do que todo mundo, a jejuar melhor do que todo mundo, a exibir sinais exteriores da sua religiosidade.
Isso também é forte nos convertidos?
Muitas vezes acontece com os convertidos. Fethi Benslama também diz que, para algumas pessoas, isso pode ser o gatilho da violência, especialmente dos chamados atentados suicidas. É como se a pessoa sentisse que só se realizaria, só viveria se morresse pela causa. Na verdade, é um morrer como uma forma de ficar vivo. Daí a ideia do martírio e da figura do mártir, como o morto que vive.
A motivação do Estado Islâmico é puramente religiosa?
Não. Em alguma medida tem uma ideologia de fundo religioso, mas quando se pretende criar um Estado que funcione segundo um determinado modelo, esse é um projeto político. Quando cruza a fronteira, vindo do Iraque, o Estado Islâmico começa a crescer, a operar com muita força na Síria. Antes era Al Qaeda no Iraque. Vou falar da minha memória pessoal. Passei uns dois anos falando em todos os debates que o regime da Síria estava lutando com grupos do radicalismo mais profundo. Eu nomeava a Jabja al-Nusra e o Estado Islâmico. Dizia que eram eles que estavam fazendo o trabalho militar. No Ocidente, falava-se do Exército Livre da Síria e da Coalizão Nacional Síria. Eu dizia que estavam falando de uma ficção. Ninguém queria ouvir. E estava muito claro o que estava acontecendo.
E agora?
O mundo só pareceu acordar para a existência do Estado Islâmico quando tomou Mossul no Iraque, há mais de um ano, e se aproximou do Kurdistão iraquiano. Só então fez-se uma coalizão para lutar contra o Estado Islâmico. Antes, durante muito tempo, os países da região, a Turquia, a Jordânia, a Arábia Saudita, o Catar e também os Estados Unidos e a França estavam deixando o Estado Islâmico e a Jabja al-Nusra agir livremente.
Deixando ou apoiando?
Deixando e apoiando. A ideia de que eles estavam atacando o Estado Islâmico é uma ficção e mesmo agora, com a coalizão, o esforço não convence. Estavam deixando livre curso ao Estado Islâmico e à Jabja al-Nusra para que eles pudessem derrubar o regime. Mesmo com os ataques em Paris, a mensagem que parecem passar é “a gente sabe que esses caras são perigosos, mas eles estão sob controle”. Horas antes dos atentados, Barack Obama disse que a prioridade era mudar o regime na Síria. Esse é um problema com o qual o Ocidente tem de lidar, porque ele se apaixona por umas ditaduras e não gosta de outras. Na verdade, quando o Ocidente faz suas escolhas entre uma ditadura e outra, ele deslegitima o seu próprio discurso em relação à democracia. Se a chave de compreensão do mundo é a da ditadura e da democracia, todas as ditaduras deveriam ser colocadas na mesma cesta. Quando você desgosta das ditaduras que fazem uma opção política diferente da sua e deita na cama com as ditaduras que fazem aquilo que você quer e manda, o argumento do Ocidente sobre as ditaduras não faz nenhum sentido.
Como se percebe que o combate ao Estado Islâmico era pífio?
Primeiro, porque atacavam muito menos, sem intensidade suficiente para acabar com o grupo. O número de sobrevoos e de bombardeios era insignificante comparado a outras campanhas, como os ataques sauditas no Iêmen. Além disso, todo mundo sabe que, mesmo que se ataque muito pelo ar, para destruir um grupo como esse precisa-se de tropas no chão. Agora, se você é o Ocidente e não quer combinar os seus passos com o governo da Síria, você não tem ninguém no chão.
Não tem como combater?
O que adianta bombardear, se não está combinado com os sírios, se não há coordenação com tropas em solo? A ideia dos ocidentais é a de que eles estão em um terceiro lado, diferente do governo e dos terroristas, o dos opositores moderados. O discurso do Ocidente é: “Nós apoiamos os moderados contra o regime e contra o Estado Islâmico”. Para o Estado Islâmico, no entanto, eles não têm se demonstrado páreo. O grupo tem muitas armas americanas. Os Estados Unidos jogam armas pelo ar, em princípio para esses grupos armados moderados, e os armamentos vão parar no Estado Islâmico. Como é que vão parar? Em algumas circunstâncias, eles entram em luta com o chamado grupo moderado, ganham e ficam com as armas. Ou então eles pagam melhor e as pessoas saem do grupo moderado, passam para o Estado Islâmico e levam suas armas. Ou então os Estados Unidos sabem onde é que as armas vão parar. Tudo é possível.
O Estado Islâmico tem condição de derrubar avião do chão?
Até agora dizem que não. Não tenho a informação. Não parece ser o caso, mas não poderia dizer. Eles são bem equipados. Você não sustenta uma campanha de tanto tempo se não estiver. Eles são numerosos, bem treinados, estão hierarquizados.
Como o Ocidente lida com os estrangeiros que se alinham ao Estado Islâmico?
Isso faz parte do jogo dúbio do Ocidente. Ele facilitou a saída desses elementos “radicalizados”, para irem lutar com o Estado Islâmico e outros grupos porque eles talvez ajudassem a derrubar o regime. E tenderiam a não voltar. Não voltar porque seriam mortos em combate ou, se vitoriosos, ficariam por lá. Além disso, grupos como o Estado Islâmico em princípio não permitem que seus combatentes voltem aos países de origem. O Ocidente, então, não precisaria ficar vigiando esses elementos “radicalizados”. O que aconteceu nos últimos tempos? A Rússia entrou com força. O Estado Islâmico começou a ficar incomodado, a perder terreno. Começou a enfrentar dificuldades. Passou então a deixar alguns elementos voltarem.
Por quê?
Esta é uma tese que está circulando. Tanto é que o homem que seria o mentor dos ataques em Paris, o belga (Andelhamid Abaaoud), era um líder local bastante importante na Síria. Ele dirigia toda uma unidade. E a esse indivíduo foi permitido voltar. Algumas dezenas voltaram, talvez com a intenção de responder à coalizão: “Vocês começaram a nos pressionar, vamos começar a incomodar vocês em outros lugares”. Então, em princípio, se foram eles, teriam dado uma resposta para a Rússia quando derrubaram o avião russo no Egito. Deram uma resposta para o Hezbollah libanês, mais uma, atacando Beirute com duas explosões, em um bairro muito populoso, majoritariamente xiita. Depois, atacaram em Paris.
Qual o simbolismo de Paris?
Acredito que Paris não está na mesma categoria que a Rússia e o Hezbollah, porque esses dois são inimigos efetivos. Para mim, o elemento fundamental da França é o encontro sobre o clima, com 110 chefes de Estado e de governo. Quando explodem uma bomba a algumas centenas de metros de onde está o presidente francês e saem matando gente pela cidade, não estão dando um recado para Paris. Estão dando um recado para o mundo. Alertam sobre o que podem fazer. Não tem tanto a ver com a França como inimiga. Não que eles se enxerguem como amigos da França.
E os ocidentais?
Fazem um jogo dúbio, mas não porque eles tenham algum gosto especial pelo Estado Islâmico. Eles têm consciência do perigo, do radicalismo, mas acham que é um risco manejável. Além do que, para tomar medidas mais drásticas, é preciso mobilizar um conjunto de atores. E cada um está jogando o seu jogo e deixando o Estado Islâmico e outros grupos agirem. A Arábia Saudita, por exemplo, tem a sua própria agenda. A França especialmente está amarrada com a Arábia Saudita e com os países do Golfo, por questões comerciais. Eles intensificaram enormemente a compra de armas da França. Minha leitura disso é que assim eles compram a voz da França. A França é membro do Conselho de Segurança da ONU, vai estar em qualquer mesa de negociação. E a França ficou muito mais vocal do que os Estados Unidos.
A Arábia Saudita também tem interesse na queda de Bashar al-Assad?
Muito. Eles têm interesse na queda de Bashar al-Assad, na Síria, e no enfraquecimento do Irã, que eles percebem como o seu grande inimigo. Os sauditas também têm interesse na destruição do Hezbollah, do Líbano. Estão totalmente alinhados com Israel, com os Estados Unidos, e talvez sejam os mais radicais nesse investimento no Estado Islâmico como arma de geopolítica. Os turcos fazem o jogo deles, que também é bastante negativo. O Catar igualmente. Então, é preciso que todo esse pessoal mude e diga: “Não, não dá mais para ficar apoiando ou deixando agir esse grupo”. Até agora, no entanto, a conversa deles é: “A gente acabou de sofrer um ataque. O terrorismo é uma coisa terrível, mas Bashar al-Assad precisa sair”. Ou seja, eles ainda estão jogando o jogo da deposição do regime. Não conseguem admitir que só vão vencer esse grupo se promoverem uma transição gradual. Não é só uma questão do regime. Quem conseguir controlar a transição controlará a posição da Síria em relação a Israel, ao Irã, ao Hezbollah, à Palestina. Então, não é tanto a figura de Bashar al-Assad. É onde é que a Síria vai estar. É o gás de quem que a Síria vai transportar. Por isso ainda há queda de braço. A Rússia e o Irã já sinalizaram que não vai dar para derrubar o presidente.
Qual o seu prognóstico para a Síria?
Tende a demorar, porque vão continuar apostando em derrubar Bashar al-Assad. Talvez eles estejam apostando que a ação russa tenha data para terminar. Além disso, há muitas cartas do lado russo, sírio, iraniano. Acredito que vai demorar ainda, porque os ocidentais não estão convencidos de que já deu.
O economista Paul Krugman disse que o objetivo do terrorismo é espalhar o medo e que as mudanças climáticas são mais perigosas porque são capazes de destruir a civilização. O que acha disso?
De fato, isso é verdade, na medida em que o terrorismo, esse tipo de violência, é sempre limitado e não representa risco existencial para a humanidade. Ele é sempre mais simbólico. Esse é o tipo de discurso que quer chamar a atenção para o clima, para não nos deixar totalmente tomados pelo espetáculo da violência. E o clima tem realmente potencial para, no médio e longo prazo, inviabilizar a vida na terra. O terrorismo não tem essa perspectiva e nem poderia fazê-lo.
E Paris, você considera como atos de guerra?
Tem uma diferença entre a definição técnica e a retórica, a representação. A retórica e a representação francesas são: “Fomos atacados. Foram atos de guerra”. Talvez por um tempo os franceses vão dizer que realmente sofreram um ato de guerra. Tecnicamente não é uma declaração nem um ato de guerra. Do ponto de vista do Estado Islâmico, de quem fez os atos, eles também podem representar isso como, “levamos a guerra até a França”. Mas isso também é uma questão de retórica e de representação. Mais relevante até do que a representação é a instrumentalização da retórica e da representação. Quando se diz que não sofreu apenas um ataque terrorista, que sofreu um ato de guerra, justificam-se de antemão ações futuras. Pode-se atacar, destruir. Ou seja, a retórica serve como justificativa. É claro que esse discurso da guerra aparece há muito tempo, pelo menos desde 2001, quando os americanos resolveram dizer que estavam em guerra contra o terror. Isso servia a vários propósitos, na medida em que eles eram a única superpotência. Nenhum poder sobrevive se não tiver um inimigo pensado como extraordinário. Então, os Estados Unidos precisavam de um inimigo e esse inimigo seria o terror.
Com o avanço do Estado Islâmico e o esfacelamento de países como a Síria, como fica a geopolítica da região?
Muito complexa. Sempre foi e vai continuar sendo. Para a geopolítica da região, a peça que vai definir tudo é a Síria. Tem outros atores extremamente importantes, como o Egito, mas essas posições estão todas mais ou menos sedimentadas. Em termos de jogo geopolítico, as grandes disputas na região, o que tem potencial de mudar tudo é a Síria. Disso não tenho a menor dúvida.
E o Estado Islâmico?
Nesse jogo, o Estado Islâmico é um instrumento ou um ator útil. Ou um ator que atrapalha.
Quem financia o Estado Islâmico?
Hoje ele se autofinancia em grande medida. Com o petróleo, com impostos e outras coisas. Ao que dizem, quando o Estado Islâmico entrou em Mossul (no Iraque) havia US$ 500 milhões no banco. Ele se apropriou. Tem dinheiro que vem de fora. Tem certamente contribuições de gente rica que acredita no grupo, talvez de governos, que ajudem sem confessar.
A história de que viriam contribuições de 40 países?
Putin (Vladimir Putin, presidente da Rússia) disse na reunião do G20 que 40 países ajudam a financiar o Estado Islâmico, inclusive países do G20. É bem provável que haja esse fluxo de dinheiro. Por vias diretas ou indiretas. Porque se alguém disser, “não dou dinheiro”, mas jogar armas por paraquedas, de algum modo financiou. Se permitir que eles entrem pela fronteira da Turquia ou que eles treinem na Jordânia, está contribuindo com eles. Há muitos modos de contribuir, além de simplesmente mandar dinheiro e ajudar a pagar os salários. Quanto ao petróleo dos campos que conquistaram, eles exploram e vendem. Alguém está comprando. Isso é um sinal claro de que há muita gente deixando agir. Se todo mundo de fato quisesse restringir a ação do Estado Islâmico, eles conseguiriam mais do que conseguiram até agora. Isso vale para a Turquia, a Jordânia, a Arábia Saudita, o Catar, os Estados Unidos, para a França.
O que muda com os ataques de Paris?
Acredito que deveria mudar mais do que parece que está mudando. Os franceses ainda não deram a meia-volta. O discurso está mais ou menos onde estava antes. Eles fazem um pouco de bravata. Dizem que estão em guerra e que vão atacar maciçamente. Por outro lado, as manchetes dizem que os Estados Unidos estão fazendo um discurso de calma, de paciência. Para mim, tudo isso é mais discurso, talvez encenação, do que realidade concreta.
Qual seria a mudança fundamental?
A grande inflexão seria dizer “acabou a brincadeira” e trabalhar uma transição em que Bashar al-Assad continue presidente por um tempo, marcar as próximas eleições, procurar as pessoas da oposição mais representativa. Porque até agora, o Ocidente faz a interlocução com uma oposição que não tem qualquer representatividade em relação à sociedade síria. Opositores históricos ao regime da Síria, que estão há anos no exílio, e são supercompetentes, tiveram zero participação nos processos de negociação que aconteceram em Genebra, na Suíça. Isso porque quem escolheu os opositores e os colocou em suítes de hotéis cinco-estrelas foram os Estados Unidos, a França e outros. É a chamada oposição dos hotéis cinco- estrelas. Um novo processo negociador estava acontecendo em Viena quando ocorreram os ataques, e a oposição histórica estava lá, convidada pelos russos. Há então a esperança de que algo possa mudar.
De qualquer maneira, o regime de Bashar al-Assad incomoda.
No mundo árabe, as revoltas acontecem mesmo em lugares onde não há ditaduras. Em todos os lugares há alguma razão para descontentamento e revolta. Aqui no Brasil, em outros lugares do mundo, as pessoas também foram às ruas. Na Síria, como na maior parte dos países árabes, de fato havia uma revolta plausível, que tem a ver com os sistemas de governo, as restrições à liberdade, a crise econômica. Vários fatores que são comuns ao mundo árabe. Aconteceu na Tunísia, no Egito, aconteceu em outros lugares, inclusive na Síria. O Ocidente reagiu a cada uma dessas revoltas de um modo diferente, especialmente em termos de representação. Como o que nos interessa agora é a Síria, o Ocidente representa isso como todo o povo contra o regime.
Na sua opinião, como é?
Essa representação é falsa porque não é todo o povo, não é nem a metade. Recentemente, por exemplo, o presidente da Síria concorreu às eleições. Visto daqui, diríamos que foi um simulacro de eleição. Os dois outros concorrentes não eram verdadeiramente opositores. O cara ganhou 80% dos votos, mas não tenho a menor dúvida de que, hoje e por um bom tempo, em qualquer eleição que se faça na Síria, com qualquer critério, com participação livre, esse mesmo presidente vai ganhar.
Por quê?
Primeiro porque ele tem de fato o apoio de uma boa parte da população. Isso não quer dizer que não haja uma oposição significativa nem que esse regime não tenha calado, prendido, exilado as oposições. O que estou dizendo é que ele conta com um apoio popular muito importante, em parte pelo fato de o eleitorado árabe ter um apreço muito grande por personalidades fortes, por líderes centralizadores. Por isso que os homens, no sentido do indivíduo, são muito mais importantes que as instituições, que a alternância no poder. Claro que, em sistemas autoritários, esse governante personalista tende a se perpetuar, o que às vezes leva grandes parcelas da população a votar no ditador.
Como fica a Síria em relação à política da região?
A posição do regime sírio é muito clara em relação a alguns aspectos centrais daquela região do mundo, entre elas a questão da Palestina. Qualquer que seja a caracterização que façamos do governo Bashar al-Assad e do pai dele (o presidente anterior, Hafez al-Assad), enquanto autoritário, ditatorial, o fato é que é um regime que se recusou a virar cliente e pagou um preço alto por isso. Estava tudo dado para que a Síria firmasse a paz com Israel, e os sírios ficassem os melhores amigos dos Estados Unidos e das potências ocidentais. Bastava que os sírios entregassem o assunto palestino, que deixassem o Líbano entregue ao projeto de pacificação com Israel, ao alinhamento com os Estados Unidos. Então, historicamente, com relação ao alinhamento político na região, a Síria manteve uma posição de muita coragem, de muita autonomia.
Quando ficou evidente que a Síria não se alinharia com os Estados Unidos e aliados?
Quando fizeram as negociações de Madri, quando George Bush pai levou todo mundo para Madri para negociar um acordo geral, que abrangesse todo o mundo árabe e Israel. As negociações falharam. É importante o fato de que foi a Síria que se recusou a negociar bilateralmente. A ideia era que Israel negociasse com os palestinos sozinhos, com os libaneses sozinhos, com os sírios, com os jordanianos. Ou seja, que houvesse negociações bilaterais entre cada ator e Israel, mediadas pelos Estados Unidos. Na medida em que se compartimenta, cada um ficaria mais fraco dentro da negociação geral.
Como terminou o encontro?
As negociações de Madri falharam. A Síria se posicionou de maneira muito forte. Insistiu que se não tivesse um pacote geral, não teria negociação. Logo em seguida, porém, conseguiram que Israel negociasse bilateralmente com a Palestina. E os palestinos estão patinando até agora, para conseguir o mínimo do que foi prometido para eles em 1993.
Agora, o que se percebe na Europa é uma ascensão da direita e uma maior resistência a receber imigrantes.
Isso é inevitável. E a questão dos refugiados envolve um jogo que não está sendo muito discutido. Isso porque os refugiados sírios estão saindo da Síria já há um bom tempo. Desde 2011 tem um fluxo constante. Uma boa parte dos refugiados que foram para a Europa nos últimos meses não saiu da Síria. Eles, na realidade, estão saindo da Turquia em direção à Europa. Então, há uma desconfiança de que também esteja sendo dado um recado turco: “Olha, se vocês não fizerem exatamente o que eu quero, eu vou deixar esse pessoal todo ir para aí.”
O material sobre terrorismo conta ainda com uma análise de Roberto Godoy, do jornal O Estado de S. Paulo, intitulada O Terror Vai às Compras, uma explicação com base na história para os ataques em Paris feita pelo professor Jorge Artur dos Santos, um texto opinativo de William Waack, além da resenha do livro A Origem do Estado Islâmico, do irlandês Patrick Cockburn.