Na praia havia um menino


Salem Nasser

18/09/2015



18/09/2015 12:00, atualizada às 21/09/2015 12:33

É difícil, desde o conforto de nossas casas, falar com autoridade sobre o sofrimento dos refugiados. Por isso, quase calei.

Com meus filhos no colo, não posso, se quiser evitar as lágrimas e o terror que virá me perpassar o corpo, conceber aquele momento terrível em que teria que lhes soltar a mão no meio de um Mediterrâneo escuro e frio.

Conheço um pouco os dramas que são o lote de famílias imigrantes, ligados sobretudo ao que alguns chamariam de desdobramento identitário, à sensação de ainda não pertencer a este lugar e de já não pertencer àquele outro.

Mas não conheço, como a maioria de nós, o que deve ser a enormidade do medo quando se tem que abandonar toda a própria história, cortar as raízes que nos ligavam às nossas casas, nossas famílias, nosso passado, e que alimentavam nossos sonhos de futuro. O medo terrível de cruzar um mar noturno em botes de borracha, com os filhos! E o medo terrível que nos leva a cruzar o mar.

Disto que é essencialmente um quadro contendo milhões de tragédias, arranhamos apenas a superfície com a nossa compreensão.

Isto é, quando tomamos conhecimento da tragédia.

Foi preciso que o mar nos cuspisse à cara um menino para que nos déssemos conta.

E foi providencial que o menino não fosse de outra cor, porque talvez então não viríamos a nos dar conta.

E foi preciso que chegasse à Europa esta pequena marola para que tivéssemos notícia daquilo que inunda e sufoca as margens deste mundo: quase quarenta milhões de deslocados internos, quase vinte milhões de refugiados.

O mar cuspiu à cara do Ocidente uma parte da culpa que este carrega. Porque o Atlântico é um pouco maior que o Mediterrâneo, a coisa ainda não chegou à fonte primeira. Antes dos sírios começarem a vagar desterrados, já o faziam os milhões de afegãos e iraquianos.

Mas ninguém, nem no velho nem no novo continente, acusa assim o golpe e assume alguma culpa.

Ninguém está perto de reconhecer que, de tanto brincarem de mudança de regime, abrindo para isso caminho a hordas do Estado Islâmico e seus congêneres, os senhores deste mundo não apenas desterraram os milhões e os entregaram às suas tragédias, mas também permitiram que se destruísse parte da história da humanidade, parte do legado de diversidade cultural, étnica, religiosa que desde os primórdios da civilização tinham no Iraque e na Síria o seu habitat natural.

E persiste-se ainda hoje no erro…

Um amigo me disse que Drummond teria podido fazer um poema ao seu estilo: na praia havia um menino, na praia havia um menino, na praia havia um menino…

O resto, ainda que precise ser dito, parece mesmo não ser mais do que ruído.

*Salem Nasser é professor de Direito Internacional da FGV Direito SP.

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