Arábia Feliz


Salem Nasser

21/10/2016



Perguntado sobre o que eu chamava de felicidade, tive que confessar, senão propriamente ignorância, ao menos uma incapacidade para a definição sábia.

Ainda assim, arrisco dizer que em nenhum lugar do mundo árabe reina hoje a felicidade. E mais, enxergo grande parte do passado como envolto pela mesma sombra pesada.

Nos últimos dias, uma alma sedenta de esperança poderia ler nas notícias pequenas promessas de algum alívio: um avanço no Iraque contra as forças do chamado Estado Islâmico; uma trégua na batalha por Aleppo, quem sabe  até um novo status quo militar na Síria que permita negociações de paz; uma pausa na guerra do Iêmen. Alívio, nenhuma felicidade.

A Arábia feliz não é, então, a de nossos dias.

Esse era o nome que os romanos antigos davam à região da península árabe que corresponde grosso modo ao Iêmen de hoje. Era feliz porque contrastava com a Arábia desértica ao norte. Era próspera por sua agricultura e por sua posição privilegiada para o comércio marítimo.

Os tempos mudaram e o petróleo que fez a riqueza de outros não estava ali para preservar aquela felicidade. Hoje o Iêmen é possivelmente o mais pobre dos países árabes.

Essa deve ser uma das razões, certamente não a única, por que quase não se fala da guerra que castiga o país há mais de dois anos.

A cobertura, entre nós, do Iraque e da Síria apresenta uma incapacidade e um vício. Primeiro, ela não consegue desvendar aos nossos olhos toda a complexidade do que se está contando, nós ficamos aparentemente informados mas, no fundo, perdidos. Em seguida, ela tende a nos contar a história tal como alguém em algum lugar do norte – para resumirmos assim a coisa – a representa.

Mas, a despeito disso, há alguma cobertura.

Já o Iêmen merece um quase total silêncio. Antes de qualquer cobertura, a nossa ignorância é completa, o nosso distanciamento, total. Quando surge uma notícia, ela não chega a arranhar a superfície do que não sabemos. E o mesmo vício está lá: a versão se faz passar pela história completa.

É interessante que finalmente aquele conflito tenha surgido nos nossos radares quando o Ocidente (sim, um conceito genérico que demandaria explicação, mas que você entendeu) resolveu admoestar a Arábia Saudita pelo bombardeio indiscriminado contra os civis, o último episódio, a gota d’água sendo o ataque a um funeral, ataque que matou mais de 150 pessoas.

O apoio irrestrito e acrítico dado à campanha aérea da chamada coalizão liderada pela Arábia Saudita há meses não merece destaque ou comentário na imprensa, mas no momento em que o comportamento do aliado finalmente chama a atenção e pode manchar, junto com a dele, a sua reputação, talvez se justifique uma critica pública.

Sim, eu sei, nada disso ajudou a entender o Iêmen ou o que se passa lá neste instante… um pequeno resumo então:

O Iêmen é um país em que várias divisões se sobrepõem umas às outras. A república atual resultou de uma unificação de dois Iêmens que se deu em 1990. Antes disso, havia no norte (no mapa está mais para oeste) uma república nacionalista árabe resultante de uma tomada de poder por militares nos anos sessenta e que veio substituir os imams zaiditas que governavam há uns mil anos, e havia no sul (no mapa está mais para leste) uma república socialista fundada após a independência em 1967.

O norte, montanhoso e rochoso, tinha servido de refúgio, no primeiros tempos do Islã, a um grupo de muçulmanos ditos zaiditas, que têm em comum com os outros grupos do Islã xiita a crença nos imams, mas que se diferencia dos demais em alguns detalhes importantes. Essa região chegou a ser dominada pelos Otomanos em duas ocasiões, mas não de modo continuado, talvez por conta da geografia combinada com o que se poderia chamar de espírito guerreiro da população.

O sul tinha um porto historicamente importante, Aden, e, por isso mesmo virou colônia inglesa no século XIX e assim ficou até a independência em 1967.

Quando da unificação, o presidente do norte, Ali Abdullah Saleh, tornou-se presidente da nova república e continuou sendo até ser destituído em consequência das recentes revoltas no mundo árabe.

Um grupo político surgido nos anos 90 entre a população majoritariamente zaidita do norte, chamado Ansar Allah, fundado por um homem de sobrenome Houti, que tinha sido violentamente combatido pelo governo em mais de uma ocasião, apoiou as manifestações pacíficas, ainda que pontuadas por episódios de violência, que acarretaram a troca de governo.

A Arábia Saudita, entre outros, apoiou um esquema de transição política em que um governo de união nacional prepararia uma nova constituição e um novo futuro. Ansar Allah (conhecidos também como Houtis), que tinham surgido em parte para combater a influência crescente do wahabismo saudita no país,  participaram do governo.

Em 2014, o governo unificado falhou, os Houtis, de um lado, e o novo presidente, de outro, se responsabilizaram um ao outro.

Considerando-se traídos ou ameaçados, os Houtis avançaram em armas sobre a capital, no Norte, e logo continuariam em direção mais ao sul. O presidente renunciou e logo depois se refugiou na Arábia Saudita.

A Arábia Saudita considerou que os Houtis seriam a ponta de lança da ameaça iraniana, xiita, contra o mundo árabe sunita à frente do qual ela se enxerga como liderança máxima, e contra o seu próprio território, já que o Iêmen é seu vizinho. Ela restituiu a presidência àquele que tinha renunciado e iniciou uma campanha militar para lhe dar o domínio sobre todo o Iêmen.

A campanha militar é um fracasso. Mesmo o controle do sul, majoritariamente sunita, é precário. Ainda assim, a Arábia Saudita constitui hoje o maior obstáculo a uma paz negociada.

Adicione-se a isso tudo a atuação no sul da Al Qaeda na Península Arábica e, em germe, do Estado Islâmico. A atuação saudita e o apoio ocidental são então tocados por uma ambigüidade difícil de resolver: na medida em que representam o conflito como uma luta do sunismo contra o avanço xiita do Irã, fica difícil, a despeito de belos discursos, desvincular a própria ação do fortalecimento desses grupos extremistas que afirmam os mesmos objetivos.

Ninguém está obrigado a saber do Iêmen ou se interessar por ele, as tragédias do mundo são muitas. Mas talvez valha a pena saber que no Iêmen e em relação a ele também está em disputa o modo como somos levados a ver o mundo.

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